Fuga

A minha vontade era clara desde o início: queria enfrentar a guerra no meu país. Decidi assim baseada no conforto psicológico e na esperança de que uma cidade de três milhões fosse menos propensa ao contágio do que uma metrópole de dez milhões.

Fugimos de Londres, mal nos foi possível. A minha ansiedade disparara para níveis alarmantes ao compreender que Boris Johnson pretendia tratar a pandemia com fleuma britânica e um olho na economia. Tinham passado seis semanas desde o primeiro caso de covid-19 (a 31/1), mas as medidas de distanciamento social que da Ásia à Europa se adoptavam em força e de uma só vez (seguindo as recomendações da OMS) surgiam no Reino Unido espaçadas a conta-gotas e só depois de Boris ser forçado a desistir do plano de deixar infetar 70% da população a fim de alcançar a chamada “imunidade de rebanho”.

Herd immunity? Seriously?” Era mais uma vez a vontade britânica de se diferenciar do “continente”. Felizmente, bastaram 24 horas para os cientistas contestarem o custo humano da “imunidade de rebanho” (certamente os mais frágeis e vulneráveis não podiam ser cobaias de tal experiência) e para Boris voltar ao caminho prescrito pela OMS, suprimindo o vírus pelo isolamento e não pelo alastramento.

A minha vontade era clara desde o início: queria enfrentar a guerra no meu país. Mas sopesei os riscos: falei com médicos ingleses e portugueses, disseram-me que nem o NHS nem o SNS tinham recursos técnicos ou humanos para fazer face ao desafio. Decidi assim baseada no conforto psicológico e na esperança de que uma cidade de três milhões fosse menos propensa ao contágio do que uma metrópole de dez milhões. Decidi depois de ver que o Governo português tinha outro vigor e pressa, fechando as escolas duas semanas depois da primeira ocorrência.

Porém, decidir não bastava, o tempo corria contra nós. O Governo britânico resistia a fechar escolas, eu não era livre para tirar o miúdo da escola três semanas antes das férias da Páscoa. “A minha escola é sempre das últimas a fechar portas”, prevenira-me o meu filho, desejoso de boicotar o plano que o afastaria de Inglaterra, o seu país natal.

Domingo, dia 15 de Março, contra todas as expectativas, a escola do meu filho antecipou-se às restantes, suspendendo as aulas cinco dias antes do fecho oficial das escolas para uma desinfestação. A empresa do meu marido autorizou-o a trabalhar de casa. Nunca comprámos passagens tão em cima da hora, faltavam 48 horas para a partida.

Fizemos as malas para uma estadia que sabíamos não seria curta. Dormimos mal, eu tinha lido tudo sobre ar reciclado dentro dos aviões, sujeitávamo-nos a uma prova de algum risco.

Dia 17/3, terça-feira, em Luton, o painel de embarque informava que o voo para o Porto tinha sido cancelado. Estranhamente o meu marido recebeu um e-mail avisando que o nosso voo estaria atrasado, olhámos uns minutos um para o outro assustados, fora falso alarme, o voo descolaria a tempo e horas.

O avião estava cheio. Nunca detectei tantas tosses ocasionais de um ou outro passageiro na fila de embarque. Sentados a bordo, na fila à nossa frente, sentou-se uma hospedeira da companhia, vestida a rigor, com óculos de sol a maior parte do tempo que, reclinando-se para a frente, não parava de espirrar, assoar-se, tossir. É só uma gripe, assegurou-me o meu marido. Rendi-me à suposição com o optimismo do desespero: seria, sim, não era uma tosse seca. A hospedeira à nossa frente comprou uns presentes no duty free, escutei-a a falar um inglês que traiu a sua origem portuguesa. “Vai para Portugal?”, perguntou-lhe a colega que a atendia. “Tirei uma licença”, confirmou a hospedeira engripada.

As máscaras N95 que eu comprara expressamente para a viagem eram uma benção e davam-nos uma sensação de segurança que, falsa ou verdadeira, era melhor do que nada.

Sentados na fila atrás de nós, três jovens portugueses contavam como haviam informado os amigos que iam regressar a Portugal e como a reação havia sido pouco compreensiva. Os meus amigos não queriam que eu voltasse, que direito têm eles?

Percebi quão controverso era o direito de todos os portugueses embarcados naquele avião regressarem a casa. Mesmo fazendo a quarentena auto-imposta como pretendíamos (ainda não era compulsiva), mesmo passado o teste do auto-isolamento, nunca seria um assunto pacífico.

Estávamos todos conscientes que chegávamos num dos últimos voos de Londres para Lisboa. Nesse mesmo dia, a Europa fechava as suas fronteiras por 30 dias. Na véspera, as fronteiras terrestres entre Portugal e Espanha haviam sido encerradas. E no dia seguinte o Governo decretava o estado de emergência em Portugal.

A nossa sensação de alívio só se instalaria gradualmente com o passar dos dias.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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