Covid-19: imprevisibilidade e resiliência

Ter consciência de que o coronavírus não só ameaça a nossa vida e a nossa saúde, mas também a nossa sociedade democrática, sobretudo se for longo o período de restrições (e de eventuais racionamentos), é de algum modo uma forma de nos prevenir ou vacinar contra futuras tentações neo-totalitárias e de preservar a nossa vida coletiva.

Ao tomarmos consciência da curva exponencial de crescimento da epidemia da covid-19 torna-se natural que desperte, na nossa consciência individual e na consciência coletiva, uma crise de angústia, o sentimento de vulnerabilidade (inerente à condição humana) e o temor de virmos a enfrentar uma catástrofe humanitária de uma dimensão enorme e, pior, de proporções indetermináveis.

Vivemos desde há muitos anos imersos em informação da mais variada natureza e de repente vemos as televisões, olhamos para a imprensa nacional e internacional, passamos a vista pelas redes sociais e sentimos que desde há algumas semanas toda a vida da Humanidade passou a girar à volta da covid-19.

Tentando raciocinar com a possível frieza nestas circunstâncias, porventura piores do que as de uma guerra, porque se trata neste caso de um inimigo invisível sem causas e valores e, no atual estado dos conhecimentos científicos, ainda e sobretudo imprevisível, temos que constatar que a resposta sanitária à epidemia, nalguns países europeus (em que tristemente se destacam a Itália e a Espanha), não tem sido a ideal, antes de mais pela falta de preparação antecipada que conduziu à escassez, que sabemos existir, na disponibilidade de equipamento médico crítico, como camas com ventiladores, kits de análise suficientes para o rastreio da parte da população mais exposta, máscaras, luvas e outros meios de proteção do pessoal de saúde e da população em geral.

Nesta altura, não pode deixar de ser motivo de reflexão a comparação entre a Alemanha, com a quinta maior população de infetados do mundo e uma taxa de mortalidade muito baixa, com a Itália ou a Espanha, com taxas impressionantes de óbitos, que transformaram numa tragédia coletiva o que se passa nestes países. Ora, grande parte da explicação desta disparidade de resultados decorre justamente dessa capacidade de resposta do sistema de saúde, que é mensurável pelas diferenças em termos de quartos de emergência com ventiladores e outros equipamentos por cada cem mil habitantes que se observam entre esses países, para não falar na preparação dos recursos humanos que utilizam esse equipamento.

Por outro lado, os países europeus, incluindo Portugal, deveriam, pelo menos a partir de finais de janeiro, quando a geografia da pandemia tornava evidente que a tormenta chegaria ao Velho Continente de forma brutal, ter de imediato avançado com controlos sanitários efetivos em aeroportos e portos (coisa que só há poucos dias aconteceu no caso português) e suspendido quaisquer ligações com a China e os restantes Estados com cidadãos infetados, como a Coreia do Sul e depois a Itália

Ora, este atraso na reação à mais severa ameaça do pós-Segunda Guerra Mundial e a deficiência da oferta de serviços de saúde suficientes para o despiste e tratamento da epidemia levaram, como não podia deixar de ser, os governos a acentuarem mais as medidas de quarentena e de restrições à liberdade de movimentos, de tal modo que parece, a olho nu, existir uma correlação negativa entre o nível de equipamento e de preparação dos sistemas de saúde e a necessidade de impor restrições mais severas à mobilidade das pessoas. Na realidade, estas são tanto maiores e mais necessárias quanto menor for a capacidade de resposta do sistema de saúde!

Por isso, segundo alguns especialistas, o nível de ansiedade, individual e coletiva, é fortemente influenciado pela disponibilidade em cada país e em cada região dos necessários recursos e da eficácia, efetiva ou percecionada, do sistema de saúde.

Ora, a quarentena, absolutamente necessária no estado atual das coisas em todos os países atingidos por esta “peste negra” dos nossos tempos (e que em Portugal nos parece ter sido imposta com respeito pelo princípio da proporcionalidade da reação face à ameaça), confere a todos nós um inegável sentimento de segurança no seu início, mas se tiver que ser prolongada, por mais três meses (hipótese mais plausível) ou por mais do que um ano (cenário de catástrofe, em que a epidemia não regrediria até à descoberta e aplicação de uma vacina eficaz), irá por certo provocar um aumento acelerado do stress coletivo, da frustração, da impotência, da irritabilidade e sobretudo do medo associado inevitavelmente a estas situações. Nessas condições, o confinamento em casa pode tornar-se insuportável e levar à própria quebra da confiança no Estado e em certos valores e formas de vida em sociedade que consideramos essenciais.

Os estragos no domínio económico e social serão incalculáveis e também nesta área a imprevisibilidade é enorme quanto aos custos deste desastre humanitário, às armas de natureza monetária e financeira necessárias para manter empresas e empregos, num cenário, que pode prolongar-se, em que a atividade económica se contrairá de forma inimaginável por um período desconhecido e sobre como e quem no fim deste pesadelo irá pagar a fatura desta crise, provavelmente a mais grave dos nossos tempos.

Neste ambiente, é vital que todos nós tenhamos esperança e resiliência bastante para que, quando o fantasma da epidemia recuar e finalmente desaparecer, possamos saborear com gosto o retorno à plena liberdade e à democracia, efetuarmos as mudanças necessárias, há muito, na organização da globalização, apostarmos mais na inclusão e na igualdade de oportunidades e sairmos da crise sem qualquer vontade de experimentar modelos autoritários e medidas de restrição dos direitos que a contenção da ameaça pandémica tornou temporariamente necessárias.

É preciso resiliência de espírito para suportar o tempo das restrições em nome da segurança – por um período por ora indefinido – e também para exigirmos na altura própria a devolução de todas as nossas liberdades e do Estado de Direito em que assenta o modo de vida que queremos conservar.

Ter consciência de que o coronavírus não só ameaça a nossa vida e a nossa saúde, mas também a nossa sociedade democrática, sobretudo se for longo o período de restrições (e de eventuais racionamentos), é de algum modo uma forma de nos prevenir ou vacinar contra futuras tentações neo-totalitárias e de preservar a nossa vida coletiva.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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