A embriaguez da solidão

Tinha, à vontadinha, comida armazenada para mais uma semana — enlatados de todos os géneros, massas, arroz e um carregamento de vinho a lembrar os velhos tempos das reuniões nocturnas com o regimento da tropa.

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Chetan Menaria/Unsplash

Está há mais de duas semanas encerrado em casa, sozinho. Deixou de tomar banho, de fazer a barba e de trocar de pijama. Aquele fato de flanela verde-escuro chegava-lhe perfeitamente para se arrastar pela casa, em modo prisão domiciliária sem prazo para terminar. Limitava-se a lavar a cara e os dentes, e a trocar de cuecas de dois em dois dias, só quando sentia o cheiro a urina vindo das trousses. Tinha, à vontadinha, comida armazenada para mais uma semana — enlatados de todos os géneros, massas, arroz e um carregamento de vinho a lembrar os velhos tempos das reuniões nocturnas com o regimento da tropa.

Durante o dia, arrastava-se entre o sofá, a ver programas de merda onde se falava sempre do mesmo tema, e a cozinha, onde ia comendo alarvemente várias porcarias, que lhe davam uma satisfação imediata mas um desconsolo intestinal passadas umas horas. E tinha de ter cuidado com o abastecimento do papel higiénico, não trouxera o suficiente, como fizera com a comida. Contudo, não era caso para preocupação, voltaria a fazer como quando era miúdo: enquanto corresse água, não haveria problema. Tinha um bidé e tudo, podia perfeitamente continuar a escusar-se ao banho completo. Há uns anos tinha pensado em destruir o bidé, nunca o usava. Só agora descobria a utilidade de coisas que antes lhe pareciam inúteis (o bidé, por exemplo) e a satisfação de tantas outras coisas, como o maço de tabaco caído atrás do móvel da sala, vindo dos seus tempos de fumador, que o fizera recuperar a prática insalubre passados mais de 20 anos.

À noite, a inquietação alternava pelas divisões da casa — entre as voltas insones na cama e a passeata na varanda, transformada em solitária para fumadores e bebedores. Todavia, por mais que bebesse, e às vezes chegava a ser uma garrafa por madrugada, não parecia sentir grande diferença entre a embriaguez e a anestesia que sentia durante as horas sóbrias com luz natural. As horas diurnas, sem álcool, pareciam conter a mesma dose de alheamento.

Quanto a ter retomado o velho hábito de fumar, tinha a noção de que nunca fumara com tanto prazer como agora, e só o fazia à noite. Sentia-o como uma espécie de prazer pós-sexual, sem que tivesse tido direito a coito ou sequer a masturbação. A sua libido estava verdadeiramente afectada. Mesmo perante as revistas de pornografia dos anos 90, que sempre tinham cumprido a função de lhe animar certas partes do corpo, ficava apático, desinteressado, e preferia beber mais um copo de vinho ou fumar mais um cigarro. Acabava por adormecer de madrugada, sempre ligeiramente bebido, e murcho como uma uva demasiado madura.

Também o sono era tomado por pesadelos, situações bizarras em que se via com a mulher que amava. No último destes sonhos perturbadores de que se lembrava, acontecia a mulher estar lindíssima e nua à sua espera na cama e ele demorar-se na casa de banho. Via-se em frente ao espelho e não conseguia esfregar os dentes, não conseguia trocar de trousses, não conseguia limpar-se para ir ter com ela, para usufruir de um amor físico e amoroso, do qual nem se lembrava exactamente como seria. Via-se ao espelho, com os dentes amarelados e o cabelo empastado, e tinha os gestos amarrados como se algo invisível o prendesse. Ouvia, vinda do quarto, a voz doce da mulher que amava e nada conseguia fazer. Parecia condenado à sua imagem no espelho, perene solitário de aspecto seboso, metido eternamente num pijama escuro e encardido.

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