Maldito Excel

Raquel Varela saberá como se organiza um hospital, ou qualquer entidade com mais de uma dúzia de pessoas, como a universidade onde trabalha? Qual é o papão? Falta de dinheiro, o torniquete de Centeno, burocracia infindável? Não, o manual e o Excel.

O primeiro passo para responder a uma crise é desinstalar o Excel e proibir a “gestão eficiente”. Talvez seja melhor mesmo partir todos os computadores do país à pedrada e queimar todos os livros escritos depois de 1900.

No PÚBLICO de dia 25/3, a investigadora Raquel Varela (RV) dá recomendações sobre a resposta à crise que vivemos no texto “Bater palmas não chega. Propostas para enfrentar a crise”. Entre muitas ideias e castigos, regozija-se com a exemplar reorganização dos serviços do SNS em tempo recorde em resposta à crise. Não sei se andou pelos hospitais nestes dias (espero que não) ou se a dança de vitória tem origem nos relatos dos telejornais ou das redes sociais. Ouvi relatos diários da reorganização de um hospital do SNS e, mesmo não sendo expert em gestão hospitalar, sei que o esforço é exemplar e heroico. Acredito que a entrega total é a regra em todo o país, tal como a competência e cooperação entre clínicos, enfermeiros e gestores. Estamos aqui de acordo.

Onde descamba é aqui: “De muito pouco serviram nestes dias os manuais de “gestão eficiente” e os seus Excels de produtividade...”. Com certeza que não é o adjetivo o problema. Ou RV é a favor da gestão… ineficiente? Da ausência de gestão? Ou os médicos e enfermeiros são sufocados pelas técnicas dos manuais de gestão, que são como espinheiros entre os profissionais e os doentes?

Pus várias hipóteses. Será que RV personaliza nas células da folha de cálculo o racionamento causado pelos cortes da troika (este Governo não raciona, racionaliza)? Ou é tão esclarecida e pede sistemas de gestão mais avançados e integrados que o simples Excel? Talvez lute pelo software Open Source e pretenda acabar com os contratos do Estado com a Microsoft, desinstalar o Windows e carregar o Linux. Ou talvez tenha ouvido relatos de gestores impreparados, arrogantes ou boys em job tragicamente errados. Estaria ao seu lado em todas estas lutas!

Só a frase completa nos elucida, em que até os manuais são ridicularizados. RV saberá como se organiza um hospital, ou qualquer entidade com mais de uma dúzia de pessoas, como a universidade onde trabalha? Milhares de pacientes e familiares, servidos por centenas de médicos, ainda mais enfermeiros, auxiliares, técnicos de diagnóstico, técnicos de manutenção, logística. Isto para produzir dezenas de milhares de actos médicos, trocas de pensos e cirurgias robóticas, meios de diagnóstico, limpezas e esterilizações, centenas de milhares de registos informáticos, milhares de SMS de marcação e desmarcação, registos de horas trabalhadas e de folgas.

Qual é o papão? Falta de dinheiro, o torniquete de Centeno, burocracia infindável? Não, o manual e o Excel. Mil vezes a gestão democrática da imaginação ignorante dos que pensam que o ortopedista à saída do bloco, qual MacGyver ou da Vinci do séc. XXI, organiza a escala da Urgência, ajusta de cabeça o orçamento do serviço para comprar filtros e reescreve o software de registo de altas, em consenso democrático de braço no ar.

Deixo as brincadeiras de lado. Há um problema que atravessa toda a sociedade, mas é difícil de entender nos mais privilegiados: o horror ao conhecimento e práticas rigorosas, aos cálculos e ao planeamento, às finanças por dizerem o que se deve e pode. Gerir, organizar, definir regras, tudo isto é uma castração da livre e democrática expressão natural do homem. Como se um médico, um escritor, um investigador ou um motorista não seguissem também os seus códigos próprios.

Subjacente ao texto de RV vem a acusação aos agentes desta organização, os gestores, os que fazem contas, os que destrataram os voluntariosos estivadores, os que montaram hospitais por sua conta e que agora têm de ser requisitados, como se não se preparassem, há várias semanas, para o que aí vem, sem saber se alguém vai pagar a conta. O mundo está dividido entre bons e maus, as fronteiras são recortadas à medida da ideologia. Os médicos serão bons, mas talvez os diretores de serviço sejam vilões. Os empresários turísticos são maus, mas os agricultores bons, mas não recorram a estrangeiros na apanha. Os camionistas são bons, mas aposto que os operadores logísticos não. Já as recomendações dos referidos especialistas chineses são boas, porque estudaram afincadamente o nosso país, espera-se que sem Excel nem manuais de gestão! O que pensar da iniciativa tech4covid19.org, inspirada pelos CEO de startups hiper-capitalistas.

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