Dois filmes sobre mulheres e o regresso do fantasma da submissão feminina

Enquanto nos EUA se procura ressuscitar a submissão feminina à “ordem” masculina, dois filmes exaltam a força e a determinação das mulheres.

No início de Março, ainda toda a gente se passeava por aí, chegou às salas de cinema o documentário Woman, com a assinatura de Anastasia Mikova e Yann Arthus-Bertrand, fotógrafo, repórter e ambientalista francês conhecido pelo seu trabalho para a National Geographic e pelos seus muitos livros e documentários de grande impacto, como Home (2009), Planet Ocean (2012) ou Human (2015). Houve antestreias com debate, exibições gratuitas no Dia Internacional da Mulher (8 de Março) e o filme chegou mesmo a estrear — até que o cinema em salas parou, travado pela pandemia.

O que nos trazia Woman, como antes Human? Rostos, relatos de vidas, angústias, dores e esperanças de mulheres de várias idades e cantos do globo, em 2000 entrevistas feitas em 50 países ao longo de três anos. “Uma visão aprofundada do mundo visto pelos olhos das mulheres”, como se escreveu à data no Cartaz do PÚBLICO. Num filme que procurava, anunciavam os promotores, “trazer à luz as injustiças que as mulheres enfrentam, ao mesmo tempo que destaca a sua força interior e a capacidade de mudar o mundo apesar dos desafios que enfrentam.”

Ora na passada segunda-feira a RTP2 veio recordar-nos um outro filme, também sobre mulheres e baseado numa história tão verídica quanto insólita: A Ordem Divina, de Petra Biondina Volpe. Estreado em 2017 no país onde foi realizado, a Suíça, também no Dia Internacional da Mulher (e mais de um ano depois em Portugal, em Maio de 2018), o filme mostra que, em plena Europa, houve um país onde as mulheres só votaram pela primeira vez em 1971. E esse país foi a Suíça. Porquê? Porque, disse Petra Volpe em 2017 à SWI, “a Suíça é um país muito conservador, onde sempre houve resistência às mudanças.”

O filme tem por cenário uma pequena aldeia, em 1970, mas espelha nela a situação de um país alheio aos ventos de mudança da época. Tanto, que só em 1981 foi aprovada na Constituição a igualdade entre homens e mulheres e só em 1990 (já depois da queda do Muro de Berlim!) caiu a proibição do voto feminino no último cantão suíço. Para quem, ao ouvir falar da luta das sufragistas, a coloca automaticamente, e com glória, no início do século XX, a Suíça é um relógio em retrocesso — e logo no país dos relógios. Quem quiser ver (ou rever) o filme, ainda vai a tempo: é só recuar uns dias na grelha da RTP2. Quanto a Woman, é deixar passar a pandemia. Ele voltará.

A realidade, porém, é outro filme. Se Woman ou A Ordem Divina põem em evidência a força das mulheres e o seu olhar sobre o mundo (onde ganharam poder, mas, a par disso, são também ainda discriminadas, brutalizadas ou escravizadas, consoante as latitudes), tem-se registado nalguns países um apelo retrógrado que pretende empurrar as mulheres de novo para uma vida exclusivamente doméstica e de submissão à “ordem” masculina. Exemplo disso é, nos Estados Unidos, o #tradwive (contracção da expressão traditional house wife) que, como escreveu Natália Faria no PÚBLICO, “funciona como uma espécie de selo de um movimento que procura recuperar a nostalgia dos idos anos 1950.”

Que “nostalgia” é essa? Para se ter uma ideia, basta consultar, por exemplo, “o guia das boas esposas” (The good wife’s guide) publicado na edição de 13 de Maio de 1955 da revista norte-americana Housekeeping Monthly. Alguns excertos (onde o marido é sempre o centro e objectivo das atenções; mesmo as crianças são aprumadas para ele ver):

“Tenha o jantar pronto. Planeie com antecedência (…) para ter pronta uma deliciosa refeição quando ele chegar”; “Mostre-se alegre e um pouco mais interessante para ele; se o dia dele foi aborrecido, precisa que o animem e essa é uma das suas funções”; “Dedique uns minutos a lavar as mãos e a cara das crianças, a penteá-las e, se necessário, mudar-lhes a roupa; elas são pequenos tesouros e ele gostará de vê-las a cumprir esse papel”; “Mostre-se feliz ao vê-lo”; “Receba-o com um sorriso caloroso e mostre sinceridade no desejo de ser agradável para ele”; “Ouça-o. Você pode ter uma dúzia de coisas importantes para lhe contar, mas o momento da sua chegada não é o apropriado. Deixe-o falar primeiro — lembre-se, os temas de conversa dele são mais importantes do que os seus; “Arranje-lhe a almofada e ofereça-se para lhe tirar os sapatos. Fale em voz baixa, suave e agradável”; “Não questione as suas acções, juízos ou integridade. Lembre-se, ele é o dono da casa e, como tal, exerce sempre a sua vontade com imparcialidade e veracidade. Você não tem o direito de questionar isso”; e por último: “Uma boa esposa sabe sempre o seu lugar”.

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Felizmente, sabem. E não é aquele que esta ladainha submissa sugere. Woman ou A Ordem Divina afirmam-no bem.

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