Cientistas portugueses juntam-se para aumentar número de testes diários

Se os grandes institutos científicos portugueses avançarem todos com a realização de testes de diagnóstico à covid-19, a comunidade científica do país poderia assegurar mais de dez mil testes por dia. Capacidade actual do país é de quatro mil.

Foto
NIAID

E se, em vez de um único instituto de investigação científica em Portugal, fossem muitos cientistas nos seus próprios laboratórios – do Minho ao Algarve – a fazer testes de diagnóstico ao novo coronavírus? Esta onda de investigadores portugueses que quer ajudar na luta contra a pandemia está a fazer caminho por todo o país. “Se todos os grandes institutos decidirem avançar, asseguramos os testes que for preciso fazer”, afirma Vasco M. Barreto, biólogo doutorado em Imunologia do Centro de Estudos de Doenças Crónicas (Cedoc), da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa. “Esta ideia é tão evidente para nós que o facto de nenhum dos nossos governantes se ter lembrado disto diz muito sobre a fraca cultura científica das elites políticas.”

Quantos institutos que fazem ciência em Portugal estão envolvidos nesta iniciativa? E quantos testes poderão fazer-se por dia nos seus laboratórios? Estimativas por alto, pelo menos 14 instituições teriam capacidade para cerca de 800 testes diários cada uma – o que dá mais de dez mil: “Admitindo que entramos todos nisto e que temos financiamento (a 30 euros o teste ou menos)”, ressalva Vasco Barreto. “Com base nos mais de 360 voluntários qualificados que o movimento a que estou associado conseguiu reunir e numa estimativa por baixo do equipamento existente nas unidades de investigação, a nossa entrada em cena traduzir-se-ia num grande aumento do número de testes diários.”

Para ter uma noção da diferença que dez mil testes diários de diagnóstico poderão fazer, o stock actualmente existente em Portugal destes testes é de 27 mil – dez mil no Serviço Nacional de Saúde (SNS) e 17 mil no sector privado –, segundo disse o primeiro-ministro, António Costa, no Parlamento na terça-feira, altura em que voltou a referir que estão encomendados 280 mil testes, esperando-se a chegada dos primeiros 80 mil até sábado, 29 de Março. Por dia, até agora, as autoridades de Saúde têm dito que há capacidade para fazer 2500 testes no SNS e outros 1500 nos serviços de Saúde privados.

Em todos estes testes, tanto os do stock como os que aí virão da encomenda, está-se sempre a falar de testes que detectam o material genético (ARN) do próprio vírus, usando a técnica da reacção em cadeia da polimerase (PCR). Só dão resultado positivo durante a infecção.

Foto
Vasco M. Barreto Lia Ferreira Barreto

Um movimento espontâneo

Vasco Barreto conta como nasceu esta iniciativa da comunidade científica portuguesa na luta contra a covid-19, doença provocada pelo coronavírus SARS-Cov-2. “Creio que muitos cientistas terão começado a pensar na mesma ideia quando perceberam que os testes ao SARS-Cov-2 iriam ser determinantes.” Isto, porque uma das estratégias de combate à pandemia passa pela aplicação de muitos testes para detectar rapidamente quem está infectado ou, nas palavras do director-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, é preciso “testar, testar, testar”.

 No caso de Vasco Barreto, pôs à discussão a 11 de Março, entre colegas amigos, a ideia de os cientistas ajudarem o país com os testes de diagnóstico. “Sugeri que existe uma enorme capacidade instalada nas várias unidades de investigação – em recursos humanos e máquinas – para realizarmos os testes.”

A ideia começou a ganhar a forma certa. “Rapidamente a conversa se alargou, nomeadamente com a inclusão de Maria Manuel Mota, do Instituto de Medicina Molecular (IMM), que já estava a desenvolver esforços para testar amostras [do vírus recolhidas em doentes].” Muitos outros se juntaram logo à conversa, como Mónica Bettencourt-Dias, directora do Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC), Carlos Penha Gonçalves, também do IGC, Carlos Ribeiro, da Fundação Champalimaud, e António Jacinto, do Cedoc. “Começou um frenesim de mensagens, videoconferências, telefonemas, constantemente pontuados por partilhas de links para os novos estudos sobre a covid-19 que têm surgido a um ritmo acelerado.”

A este núcleo central de quatro instituições da zona de Lisboa – Cedoc, IGC, IMM e Fundação Champalimaud – juntou-se já a Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, o Instituto de Tecnologia Química e Biológica e o Instituto de Higiene e Medicina Tropical. Na região de Lisboa, o movimento está a articular-se e a alargar-se também a outros institutos de ciência, como o Instituto de Bioengenharia e Biociências do Instituto Superior Técnico e ainda o Instituto de Biologia Experimental e Tecnológica.

Mas este movimento não se fica pela região de Lisboa e as instituições que procuram contribuir com testes encontram-se de norte a sul do país: o Instituto de Investigação em Ciências da Vida e Saúde da Universidade do Minho, em Braga; o Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (i3S) da Universidade do Porto; o Instituto de Biomedicina da Universidade de Aveiro; o Centro de Neurociências e Biologia Celular da Universidade de Coimbra; e o Centro de Investigação Biomédica da Universidade do Algarve. De forma independente do movimento, surgiram ainda mais duas iniciativas para fazer testes na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra e na Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa. Tudo somado, há pelo menos 16 instituições científicas empenhadas neste esforço. “Vários projectos impulsionados por cientistas surgiram espontaneamente em todo o país”, resume Vasco Barreto. “Estamos a organizar uma lista de cientistas voluntários de qualquer parte do país que poderão ser mobilizados para as tarefas, inclusive noutros institutos que não aqueles a que pertencem.”

Receitas próprias para kits

 No IMM, por exemplo, Maria Mota também tinha lançado o repto (a 12 de Março) para que investigadores do instituto criassem o seu próprio kit de diagnóstico do novo coronavírus. Seguindo o protocolo estabelecido pela OMS para os testes de diagnóstico, os cientistas do IMM adaptaram essa “receita” usando reagentes comprados em Portugal. Os reagentes (agora em risco de se esgotar, dada a procura para os kits) são essenciais a todo o processo, tanto na extracção do material genético do vírus como depois na sua detecção. Imaginemos que a “receita” de um bolo indica margarina de uma marca, neste caso os investigadores utilizaram outra margarina (reagentes) e depois tiveram de se certificar de que o bolo ficava bom.

Foto
Maria Manuel Mota Nuno Ferreira Santos

Este kit de diagnóstico com receita caseira (em vez de ser importado) já foi certificado pelo Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (Insa), o laboratório de referência no país para os testes. Encontra-se agora nos acertos finais de validação dos resultados e, segundo explicou Maria Mota ao PÚBLICO há dias, o IMM espera começar em breve com 300 testes por dia e chegar aos mil. Sem incluir os recursos humanos – todos voluntários –, cada teste custa à volta de 30 euros.

Também na Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa, João Gonçalves conta que desenvolveram um kit de diagnóstico com receita própria: “O kit é montado por nós, mas os reagentes são comprados a empresas estrangeiras.” Também este teste obteve já a certificação do Insa e, tal como o kit do IMM, detecta material genético do vírus. “Iniciámos este processo há duas semanas sozinhos, mas estamos neste momento a colaborar com outras faculdades e institutos para transferir know-how”, acrescenta o investigador, dizendo que procuraram ao mesmo tempo inovar mais os testes para os tornar mais baratos e eficientes. “Estamos a apontar para uma capacidade máxima de 700 testes por dia, mas neste momento temos capacidade para 350.”

E, para não haver dúvidas, João Gonçalves esclarece que ninguém deve dirigir-se directamente a estes institutos para os testes. “Nós, como institutos de investigação, não vamos fazer nenhuma recolha de amostras. Têm de vir via SNS. As amostras que o Estado pedir terão de ser pagas via SNS.” Esta equipa já contactou a Administração Regional de Saúde (ARS) de Lisboa e Vale do Tejo, para haver articulação. “Isto tem de ser coordenado pelas ARS, para se saber quais são os laboratórios científicos disponíveis para receber amostras.”

Foto
Joana Almeida Palha DR

Outra “receita” própria para um teste de diagnóstico surgiu no Instituto de Investigação em Ciências da Vida e Saúde da Universidade do Minho. “Ainda não está certificado, mas o protocolo foi desenvolvido com base no recomendado pela OMS e estamos numa fase final de validação”, conta Joana Almeida Palha, neurocientista daquele instituto e vice-presidente da Escola de Medicina da Universidade do Minho. Grande parte dos reagentes deste teste, acrescenta, é fabricada em Portugal. “Para já, estamos a validar testes baseados em PCR [para detectar o material genético do vírus]. Temos capacidade de fazer 300 testes por dia, sendo o factor limitante a eventual falta de reagentes”, refere Joana Palha, explicando que os laboratórios do seu instituto também estão a colaborar com o Hospital de Braga para aumentar a capacidade de diagnóstico (extracção de ácidos nucleicos e diagnóstico por PCR).

“Há um entendimento comum”, remata Joana Palha sobre este movimento pelo país, “de que a optimização dos esforços é importante.” Este esforço vai assim para lá dos testes de diagnóstico. “Os investigadores estão todos a querer ajudar, em todo o país, a nível de diagnóstico, equipamentos, voluntários”, frisa Mónica Bettencourt-Dias, incluindo aqui desde a comunicação com a sociedade sobre a covid-19 e, claro, a compreensão das múltiplas facetas da nova relação entre este vírus e nós próprios. “Estamos também a ajudar com voluntários nos hospitais – a ajudá-los com mais mão-de-obra.”

Foto
Mónica Bettencourt-Dias Daniel Rocha

Voltando a Vasco Barreto, no Cedoc estima-se que se poderão fazer 500 a 800 testes por dia. Para já, este centro arrancará com o protocolo utilizado pelo IMM nos testes. “É esta a nossa recomendação para todos os institutos”, esclarece Vasco Barreto. “Teremos ainda uma pequena equipa a desenvolver um método alternativo mais simples, que esperamos validar num futuro próximo e começar a utilizá-lo substituindo o método que o IMM está a usar.”

Sobre este movimento que se levantou da comunidade científica Vasco Barreto diz-se “emocionado, porque os cientistas são geralmente muito individualistas”. Considera ainda que a Fundação para a Ciência e a Tecnologia poderia assumir aqui um papel de coordenação a nível nacional. “Um projecto desta natureza, e à escala a que se pretende, precisa de financiamento e temos hoje muitas instituições sem fundos. Haverá várias fontes de financiamento a explorar, dos mecenas ao crowdfunding, mas faria sentido o Estado financiar parte deste esforço, o que seria sempre um bom gasto do dinheiro público. Resta saber se o Estado quer aproveitar os recursos que já financia ou mandar todos os cientistas para casa escrever manuscritos sobre a quimiotaxia da larva da mosca da fruta ou a genética da alopecia, enquanto um vírus destrói a economia.”

Sugerir correcção
Ler 25 comentários