Carta aos jovens médicos anestesiologistas portugueses (internos e especialistas)

Os exemplos dos nossos colegas em outros países devem inspirar-nos. Como com eles, o medo inicial será superado pelo profissionalismo, pelo espírito de grupo, pelo facto de podermos salvar vidas. E não esqueçam de que nesta epidemia a maior parte das vidas são salvas. Mesmo as dos muito doentes.

Caros colegas, a epidemia covid aproxima-se da fase em que provavelmente os nossos hospitais vão ter que receber e tratar muitos doentes necessitados de ventilação artificial, tratados em novos espaços e com recurso a anestesiologistas.

Decidi escrever-vos esta carta por entender ser fundamental encarar de frente o medo que ameaça tolher-nos e por sentir ser prioritário elevar a moral, motivar, encorajar e gerar confiança.

Para que o que vos transmito seja mais credível, começo por breves palavras introdutórias. Tenho 64 anos, uma idade que me confere experiência, mas que me coloca num grupo de risco face a este vírus, uma idade que, em Itália, já está no limiar de critério para não aplicação de ventilação. Sou, há já algum tempo, o médico mais velho do meu hospital (Santo António) a fazer noites e urgências de 24 horas. A partir de segunda-feira, dia 23 de Março, o planeamento da actividade dos anestesistas permite, com a redução da actividade de rotina, afectar os anestesiologistas preferencialmente à urgência e às áreas de cuidados intensivos que estão a ser criadas par dar resposta à epidemia. A reorganização permite também dispensar, pelo menos para já, a participação de colegas em situação de maior risco clínico, nomeadamente os que estão imunodeprimidos. Isto está a acontecer em todos os hospitais do país. No meu hospital, em função dos critérios definidos pelos nossos responsáveis, foi-me proporcionada a possibilidade de ficar, para já, em evicção laboral, isto é, em casa. Já havia admitido que essa questão me pudesse ser colocada e já tinha, por isso, tomado uma decisão: estarei ao serviço, tal como os mais jovens, de acordo com as necessidades que formos enfrentando, assumindo as funções e tarefas que me forem destinadas. Sem reservas. Trabalhei vários anos dedicado ao intensivismo, e embora algo desactualizado penso poder ser bem útil.

Assim, o que seguidamente vos transmito deve ser entendido como sendo eu um dos vossos e não alguém que teoriza no conforto de um gabinete. É também uma comunicação estritamente pessoal, não institucional, que não veicula a não ser a mim próprio, sendo eu um clínico como qualquer um de vós, não ocupando qualquer cargo na instituição, sendo um médico em actividade clínica a tempo completo, desde sempre em dedicação exclusiva, e a cumprir serviço de urgência semanal, tal como o fazem vocês.

Estou (estamos) optimista(s) porque agora, sim, vemos empenhamento, organização e medidas efectivas na resposta à epidemia covid. Falta ainda, a meu ver, melhorar mais a comunicação e espero que também a esse nível ocorram progressos, substituindo a atitude de procurar limitar a informação a um círculo fechado de decisores e substituindo-a por uma comunicação aberta e eficiente. É que essa tentativa de limitar a informação, sonegando-a, não impede de facto a sua propagação, que tende a ocorrer com deformação. Devem seguir-se guidelines como a emitida há duas décadas nos EUA quando o governo federal desenvolveu os princípios para regular a comunicação durante uma crise de saúde pública. Entre os princípios essências salientava-se a necessidade de “ser o primeiro”, “ter razão”, “ser credível”, “demonstrar respeito” e “promover a acção”.

Se, na reposta à crise, falta melhorar a comunicação, não é esse, todavia, o aspecto em que estamos mais em falta. Falta, sobretudo, contrariar o medo e o efeito produzido pelo facto de, entre os profissionais de saúde, se estar permanentemente a falar de covid numa atitude algo amedrontada. A forma de contrariar o medo e romper o ciclo vicioso das conversas obsessivas é promovendo atitudes e acções que elevem a moral. Isso é essencial, tal como nos dizia, há uma semana, o Paolo Pelosi, anestesiologista e intensivista italiano, ex-presidente da ESA, preocupado em aconselhar os colegas portugueses e oportunamente citado pelo professor Fausto Pinto em carta em boa hora dirigida ao primeiro-ministro e publicada no PÚBLICO. É da maior importância dar atenção aos aspectos do foro psicológico, cuidando e acompanhando os profissionais de saúde. 

O Paolo Pelosi disse-me que para serem eficazes nos cuidados aos doentes covid, os médicos têm que ser tough guys (tipos duros). É um facto, colegas, temos que ser capazes de assumir a nossa veia de tough guys & gals, a tal que nos atraiu à medicina de emergência, às catástrofes, ao intensivismo, à anestesiologia. Trata-se de uma característica que faz parte dos nossos genes de anestesistas e é algo de que sempre nos orgulhámos.

Neste momento e neste contexto, é fundamental sermos capazes de incutir, sobretudo nos mais jovens, a atitude de pensarem no contributo que podem dar, no que os fez querer ser médicos, na vantagem de serem jovens e de serem saudáveis. E também na vantagem de poderem usar a sua inteligência. Há que reconhecer que para muitos de nós, o principal inimigo, nesta epidemia, é o medo. Churchill afirmou que “a única coisa de que devemos ter medo é do próprio medo”.

É natural sentir medo. Assim, reconhecendo-o, devemos focar-nos em enfrentar o medo, natural neste contexto, com clarividência racional, apelando à excelente preparação profissional dos anestesiologistas portugueses, que não ficam atrás de ninguém em qualquer parte do mundo, e ao que de generoso há em cada médico e médica jovens.

É essencial, caros jovens colegas, entenderem a importância de motivarem os outros à vossa volta. Têm que ser capazes de ser positivos, de partir do conhecimento da gravidade da situação para a adopção de uma atitude pró-activa, organizada, criativa, implementando soluções adaptadas à realidade. Chegou o momento de passar da repetição de relatos e de conversas em círculos sem saída para uma fase empreendedora, contribuindo com ideias e iniciativas, tirando partido das adversidades para ser inovador. Isso, em cada um, é já um grande, enorme, contributo.

Ontem, procurando animar uma minha sobrinha, interna do 1.º ano de Medicina Geral e Familiar, escrevi: “És médica e podes ser útil; se agora estivesses ainda no sexto ano da faculdade, sentirias alguma frustração por ainda não seres médica, e por ficares limitada a assistir, a partir de casa, ao contributo de jovens médicos; hoje, ao reconheceres a oportunidade que te é dada por já seres médica, vais sentir-te mais motivada para ser capaz de contribuir no esforço para controlar esta epidemia.” 

Cada um deve focar-se em agir como se fosse o eleito ou a eleita, para iniciar uma cascata de motivação, de pensamento positivo, de estímulo e de apoio aos outros. Se forem dois a assumir essa atitude, já será maior a força. Se forem mais, tornam-se maioria os que conseguem ser fortes e o grupo adquire confiança e determinação. É essencial sentirmo-nos rodeados de colegas motivados e de elevado profissionalismo. E, para isso, é fundamental o contributo de cada um. Se cada um de nós for capaz de direccionar a mente no sentido de dar um passo em frente e não atrás, ocorrerá um sentimento de confiança e de força. E se há algo que os anestesiologistas valorizam e praticam é o trabalho em equipa. Somos bons e eficazes a formar equipas e será o trabalho em equipa e a ajuda mútua que nos irão conferir segurança e determinação.

O retorno, caros colegas, será compensador e dará sentido aos sacrifícios. Sacrifício sem aspas, sim, porque há agora um elemento novo na componente de “sacrifício” dos médicos e outros profissionais de saúde, aquele que decorre da exposição a um risco inesperado. Assim, é essencial acompanhar a atitude dedicada, empenhada e motivada que aqui procuro promover, com as medidas de segurança que se impõem. Essas são nossas conhecidas. Qualquer um de nós vem lidando com doentes infectados, em isolamento, potenciais transmissores de vírus como o HIV ou hepatite, contaminados com bactérias agressivas. Aprendemos todos a aplicar medidas de protecção. Agora trata-se de elevar os níveis de cuidados para agir sem que a temeridade possa resultar em brechas na segurança.

A anestesiologia é líder em segurança e por isso estamos especialmente vocacionados para agora elevarmos ainda mais os níveis de segurança. As autoridades, e sobretudo a sociedade em geral, estão a empenhar-se em múltiplas iniciativas que nos permitem ter optimismo no que se refere a dispormos de equipamentos de protecção. 

É importante, antes de concluir, chamar a vossa atenção para algo que nos distingue da maioria dos nossos concidadãos: durante esta crise manteremos os nossos empregos e teremos o salário assegurado, e iremos dispor de mais dias de descanso do que habitualmente. Tenho consciência de que esta afirmação começa por vos chocar e parecer desajustada, mas há nela muito de verdade, pois não podemos esquecer que a epidemia vai colocar muitas pessoas em situação difícil por redução de salário ou perda de emprego. Bem sei que arriscamos a nossa saúde e de certo modo as nossas vidas, mas as funções que estaremos a desempenhar estarão dentro das nossas competências, implicam uma preparação que obtivemos com orgulho ao longo da nossa formação e especialização e serão assumidas com os maiores cuidados de segurança e, esperamos, providos do material adequado. Isso contrasta com a situação de muitos portugueses que vão passar privações e dificuldades económicas. Esses sim, vão viver uma experiência de medo para a qual não irão dispor de antídotos como os nossos.

Saliento aqui o facto de que a actividade que vamos manter se realizar em grupo: ninguém ficará abandonado ou desprotegido, junto de cada um estará sempre um de nós. E que melhor apoio poderíamos ter que não esse? Levamos anos a ajudar-nos mutuamente a enfrentar as situações mais complexas lado a lado. Assim devemos manter-nos agora. Temos também larga experiência de trabalhar ombro a ombro com colegas da medicina intensiva e das diferentes especialidades médicas presentes na urgência, bem como com os indispensáveis enfermeiros que connosco formam equipa no dia-a-dia: a todos respeitamos e por todos somos respeitados, numa solidariedade que hoje nos aproxima ainda mais.

Os exemplos dos nossos colegas em outros países devem inspirar-nos. Como com eles, o medo inicial será superado pelo profissionalismo, pelo espírito de grupo, pelo facto de podermos salvar vidas. E não esqueçam de que nesta epidemia a maior parte das vidas são salvas. Mesmo as dos muito doentes. E nada mais reconfortante para alguém neste momento doente do que saber que os hospitais e os seus profissionais se preparam para os receber e tratar adequadamente. 

Entre os muitos médicos que ao longo dos tempos tiveram atitudes de coragem exemplar, escolho citar o exemplo do Dr. Ricardo Jorge, médico municipal no Porto, aquando da epidemia de peste bubónica de 1899. Tinha 41 anos de idade e empenhou-se no combate a um inimigo que lhe era desconhecido, com os limitados recursos da época. Assumiu a linha da frente visitando cidadãos infectados e investigando a doença, estabeleceu, no Hospital de Santo António, uma área de isolamento para os doentes. Identificou, no laboratório, o bacilo e obteve do reino, em Lisboa, o apoio ao encerramento da cidade do Porto e, com tudo isso, limitou a mortalidade a um total de 132 pessoas, um resultado notável. Agiu atempadamente, foi o primeiro, teve razão, foi eficaz, mas apesar disso foi atacado e acusado de ter promovido medidas desnecessárias que prejudicaram a economia e o bem-estar. Os ataques forçaram-no a abandonar a cidade a que nunca regressou. Perante esta epidemia, devemos procurar nos nossos genes o Dr. Ricardo Jorge que urge agora activar em cada um de nós. Seremos muitos Ricardo Jorge a enfrentar decididos esta epidemia que nos surpreendeu e assusta, tal como a peste surpreendeu o jovem médico Ricardo Jorge, que a enfrentou com grande coragem.

Para além de proporcionar cuidados médicos, teremos também que proporcionar o cuidar habitualmente decorrente da presença diária de familiares e entes queridos dos doentes. Seremos também os entes queridos; é também isso que os doentes esperam de nós. É dessa nossa faceta altruísta e generosa que os nossos familiares e entes queridos tanto se orgulham. Não há nenhum de entre vós, jovens médicos, que tenha chegado até onde chegaram na vossa carreira sem sacrifícios e esforços, nomeadamente dos vossos pais e avós. Qualquer um de vós tem consciência em como eles se sentem orgulhosos acompanhando as vossas carreiras. Agora, perante esta crise e o que de nós se espera, será, ao sermos capazes de superar o medo, que iremos merecer o orgulho com que somos vistos e sentidos, pelos nossos, e pela sociedade em geral. 

Sei bem que cada um sabe ser capaz, e que saberá encontrar no fundo de si um misto de impulso para agir e de serenidade. Essa serenidade, e a paz que saberemos encontrar, irá permitir-nos pôr em prática, eficazmente ao serviço dos doentes, os recursos que poucos médicos possuem e que nos anestesiologistas abundam. E esses doentes vão ser sobretudo a geração dos vossos pais e dos vossos avós.

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