Sonho, pesadelo ou delírio?

Como viver bem, em paz interior e tranquilidade, sem sabermos se há futuro. Porque de repente, este silêncio só tem aqui e agora. Só tem presente.

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Nuno Ferreira Santos

Numa manhã de domingo, Lisboa desapareceu. Ou quase.

Há um silêncio atroz, desconcertante, que nos convoca e envolve num sentimento de estranheza dominador. Se atentos, permite escutar os nossos passos na calçada, o chilrear dos pardais nos telhados ou beiradas, o som das roupas estendidas nas varandas. As avenidas desertas, não há ninguém. Nada.

Cumprimos por aqui — bem no centro da capital — o recolhimento recomendado. O isolamento social com a respectiva retirada das nossas actividades, tão apreciadas nas manhãs do primeiro domingo de Primavera. Fazemos por nos proteger e aos outros. Travar a acção desenfreada, ameaçadora do coronavírus.

Para quem lida de perto com células de silêncio bem presentes nas conversas da rotina do “divã”, este poderia ser mais um, talvez diferente (como são todos, de certa maneira), novo e só isso. Mas não é.

O silêncio que vivemos convoca na primeira linha de experiência essa enorme estranheza — não sabemos como significá-lo uma vez que não temos qualquer referência interna de auxílio que, através de memória narrativa possa, pelo menos, contextualizá-lo. É um silêncio que nos deixa simultaneamente absortos e curiosos, quase como crianças, numa expectativa agitada de procura activa de escutar algo que nos situe. Todos os silêncios precisam de som para serem tolerados e, consequentemente compreendidos.

Este é um silêncio diferente. Pela estranheza, regista em nós o seu lado desconcertante, começando por aí a gravar a sua história, no lado de dentro de cada um, para um dia recordar. Pelo jogo de contrários que nos facilita experienciar — ora chocante, assustador; ora estimulante da curiosidade — faz-nos entrar num movimento de natureza neurótica. Duvidando sistematicamente, ao mesmo tempo que sentimos o desejo de desfrutá-lo, conhecê-lo! Pelo agigantado volume que apresenta, é invasivo. Ensurdecedor, ao estilo paranóico.

Este silêncio é presente. Acontece agora, neste preciso momento das nossas vidas.

Se, de forma geral e simples, juntássemos o eixo do tempo (passado, presente e futuro) ao silêncio desta experiência que vivemos, poderíamos dizer que ele nos bloqueia (quase cessa, temporariamente) a possibilidade de sonhar.

No eixo do tempo, o sonho relaciona-se com o futuro. Normalmente, sabemos dos sonhos que temos através dos objectivos e metas que vamos traçando ao longo do percurso existencial, dinamicamente, por forma a caminhar em progresso numa construção com sentido e que dê propósito às nossas vidas. De preferência, que as encha de entusiasmo e alegria, de palavras e de histórias de realização para contar.

Quando se vive a vida com liberdade para sonhar, dormimos bem em geral.

Mas, e o que acontece cá dentro quando somos confrontados por um silêncio que atordoa e nos retira essa possibilidade instantânea? Como viver bem, em paz interior e tranquilidade, sem sabermos se há futuro. Porque de repente, este silêncio só tem aqui e agora. Só tem presente. Ele impõe-se-nos.

No eixo do tempo, de repente ficamos sem passado de referência. O futuro, o sonho, desaparece do plano do vivível, porque o presente não tem nomeação, nem significado ou subjectivação à vista. Caímos numa espécie de pesadelo. De algo negro o bastante para nos tirar o sono. Quando não temos as palavras à mão para subjectivar as experiências, normalmente acordamos de noite com pesadelos. São pensamentos à procura de um pensador, como dizia Bion ou Carlos Amaral Dias.

Este silêncio ensurdecedor do tamanho do mundo promove, em cada um de nós, a experiência de uma ruptura interior. Abre uma espécie de fenda que nos rasga por dentro, tradutora de uma experiência traumática, dolorosa, na maior parte das vezes vivida e guardada impregnada de tristeza, medo, angústia, incerteza, desconhecimento, desamparo, solidão… quase todas as vezes, uma fenda que sangra por ausência de palavras e de amor!

Este silêncio é aqui e agora. E experimentamo-lo de olhos abertos, em vigília. É como um pesadelo especial. Obriga-nos a viver sem passado e sem futuro, de preferência bem ancorados na realidade. Ou seja, sem neurotizar demais e, claro está, sem recorrermos a recursos psicológicos mais potentes como a negação por exemplo.

Na fenda que nos abre, duas classes de recursos psíquicos fundamentais podem ajudar-nos muito: Deixar fluir cá dentro os recursos depressivos que ao promoverem que nos entristeçamos, mantêm mais equilibradas as doses de medo experimentado, permitindo igualmente que façamos movimentos progressivos de integração da experiência (à medida que a vamos atravessando). Com a mobilização destes recursos, vamos também mantendo as capacidades de ajuste comportamental necessárias, bem como activadas as competências verdadeiramente criativas. De outra maneira, activadas e estimuladas de dentro, as capacidades de pensar criativo que permitirão renovar as possibilidades de sonhar.

Nesta altura este silêncio, como um perseguidor esquizofrenizante, convoca a nossa vida interior a uma transformação incontornável. Diz-nos, de algum modo, que quando o som da vida voltar, nada nem ninguém será como dantes!

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