Dia 6: Que filme surreal este que estamos a viver

Uma mãe/avó e uma filha/mãe falam de educação infantil. De birras e mal-entendidos, de raivas e perplexidade, mas também dos momentos bons. Para avós e mães, separadas pela quarentena, e não só.

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@designer.sandraf

Querida mãe,

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Hoje, escrevo quando eles já estão deitados. Durante o dia, estou a mil e não reparo, mas quando chego a esta hora fico com uma ansiedade enorme. Que filme surreal este que estamos a viver, não é? A par das más notícias, nas redes sociais multiplicam-se os posts a dizer que tudo vai ficar bem ou que tudo isto é uma maravilhosa oportunidade para aprender isto ou aquilo. E, durante uns momentos, enquanto brincamos todos juntos a um jogo de tabuleiro e as estrelas se alinham, sentimos mesmo que somos uns felizardos. Mas depois vemos a cara preocupada do nosso marido quando recebe mais um telefonema a dizer que um fornecedor não consegue fazer uma entrega, ou a notícia de que um cliente não conseguirá pagar porque fechou a empresa, e tomamos (de novo) consciência de que não estamos a brincar às quarentenas. Não sabemos, mesmo, quando é que vamos voltar a estar com os nossos pais e os nossos amigos, mas temos a certeza absoluta do impacto profundo e demorado que esta crise vai ter sobre todos nós.

E depois, ainda há a ansiedade que chega quando penso se vou apanhar o vírus, se a mãe vai ficar doente, se o senhor Zé da mercearia aqui ao lado resistirá se for vítima, e roemos as unhas de medo por aqueles da nossa família que estão a trabalhar nos hospitais. É um confronto com a nossa mortalidade, com a nossa fragilidade.

Como estão a lidar os seus amigos? A sua geração? Menos preocupada porque já viveu tantas outras coisas? Ainda por cima, passam o dia a dizer que são um “grupo de risco”, até têm hora para ir à rua. E a angústia pelas suas empresas, que com tanto esforço fizeram sobreviver à última crise? E logo agora que tudo estava a melhorar.

Uf, sorry! Já sei que lhe vou tirar o sono!! Não preciso de nenhuma solução, lol, hoje só preciso que a minha mãe me diga que vai correr tudo bem. Porque as redes sociais podem dizer o que quiserem, mas o meu coração só acalma quando é a minha mãe a dizê-lo.

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Luz dos Meus Olhos,

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Lembras-te de que era assim que D. Luísa de Gusmão começava as suas cartas para D. Catarina de Bragança, rainha de Inglaterra? Hoje apetece-me chamar-te assim, na certeza de que também ela teria dado tudo para poder passar a mão pelo cabelo da filha, sossegando-a. Também ela não lhe podia jurar que ia tudo correr bem, mas podia garantir-lhe — como eu te posso jurar a ti — que vamos ser capazes de ultrapassar este momento em que o mundo está completamente virado do avesso. E sempre estás mais perto, para o que der e vier.

Tenho a certeza de que tudo vai ficar pior antes de melhorar, mas acredito mesmo na Humanidade e na capacidade que temos de encontrar soluções para os problemas mais dramáticos. Conhecer a História dá-nos essa segurança.

Quanto aos nossos amigos, é complicado saber o que sentem mesmo, mesmo, porque nas mensagens de texto é fácil esconder o medo. E essa mortalidade com que tu te confrontas, confrontamo-nos nós com ela muito mais vezes ao dia do que gostamos de admitir. Eu tenho imensa sorte, porque já tenho netos. Faz toda a diferença, não só porque nos animam os dias — hoje contei uma história pelo FaceTime e vi um vídeo das netas de Coimbra a dançarem de fatos de ballet, a rigor —, como também porque nos dão uma certeza de eternidade. Enquanto se lembrarem de nós, mesmo que não estejamos cá, continuamos vivos. Entretanto, a tia Carmo continua a fazer-me rir: hoje prometeu-nos um jantar de enlatados mal isto acabar, esperemos que ainda estejam dentro do prazo.

Quanto à Economia, tens razão, tira-me o sono. Vamos mudar muito e precisar de ser mais solidários do que nunca, atentos a quem está perto e precisa da nossa ajuda. É muito fácil ficarmos paralisados pela sensação de impotência, esquecendo-nos de que podíamos fazer a diferença mesmo ali ao lado. Já pareço um desses posts irritantemente delicodoces de que te queixavas?

Dorme bem e até amanhã,

Mummy


No Birras de Mãe, uma avó/ mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, vão diariamente escrever-se, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam.
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