Conscientes da ameaça global, lembramos a fé, que também é global

Testemunho de Faranaz Keshavjee. “É importante perceber que há guerras e guerras. E que esta é uma que carrega muitos privilégios. Muitos. É só olhar.”

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Reuters/THILO SCHMUELGEN

Todos os dias, à mesma hora, membros da minha família, ligam-se via Internet, independentemente de onde se encontrem. Alguns ainda são os que um dia saíram de um contexto de guerra e entraram em Portugal continental, num outro contexto histórico crítico. Ontem éramos quase 70 ligados a uma corrente de energia e de boa disposição. Conectamo-nos para rezar. Seguimos um guião semelhante ao do Jamat Khana (a Casa da Comunidade, a sala de orações para os muçulmanos ismailis). Este encerrou, por tempo indeterminado.

Para as orações, leituras e cânticos devocionais, voluntariam-se miúdos e graúdos. Desde Portugal a Espanha, Itália, Inglaterra, Bélgica, Irlanda, Brasil, Angola e Moçambique; pequenos e grandes, vivendo só ou acompanhados, conscientes da ameaça global, lembramos a fé, que também é global. Ontem, inovámos. Depois das orações, pedimos a um sobrinho para tocar piano. No Jamat Khana físico não temos piano, sei que já houve outros instrumentos. Desapareceram talvez por causa das perseguições. Era preciso maior discrição, talvez.

Na despedida alguém lembra: “Vamos lá saber o que diz o Marcelo sobre o estado de emergência.” Nesse momento a minha mente teletransportou-me dos meus 52 anos, para uma menina de 5. Para outro estado de emergência, em Moçambique. A casa onde nos juntámos, pertencia a um tio que era então o presidente da comunidade. “Shhh, shhh, silêncio! Vai falar o Presidente Samora Machel!” Olhei à volta, vi pessoas muito altas e grandes, com medo... aquilo era mais sério. Agora, mais do que ficar em casa e de nem sequer poder ir à janela, senti um novo medo.

A voz, que se ouvia mal, vinha de um móvel enorme, onde havia um gira-discos e um transmissor de rádio com botões grandes. Era um móvel bonito. Não se podia tocar. Eu não podia. Podia estragar. Era o único aparelho assim. Não havia televisão.

Pouco importa agora relatar a minha experiência de transição de um contexto para outro. Mas é importante o contexto de hoje. Vejo fotografias de cenários de quarentena, que vão desde o melhor ao pior deste mundo. Se, para alguns como eu, é possível despertar em conforto e segurança, e abrir a torneira e ter água potável, entre outros confortos e garantias, o mesmo já não é real para outros que hoje, enquanto escrevo estas linhas, estão a viver nas fronteiras da indignidade humana.

É óbvio que me custa conhecer o pânico e o medo que amigos, colegas e familiares sentem. E sim, hoje mais do que ontem, temos a consciência de que nada do que temos nos está indefinidamente garantido. Mas é importante perceber que há guerras e guerras. E que esta é uma que carrega muitos privilégios. Muitos. É só olhar.

Uma tia, que teria 5 anos quando se deu a Primeira Guerra, contou uma história curiosa. Várias famílias da comunidade decidiram ir para Dar-Es-Salaam para a celebração do Jubileu de Diamante do anterior Aga Khan. Alugaram o convés de um navio. Juntaram colchões, lençóis, organizaram comida e bebida. Contou que rezavam e dançavam celebrando a benesse do líder espiritual. Neste percurso de algumas semanas, nunca se aperceberam de que o navio estava em risco de naufragar. Do convés não se percebia que o navio seguia já de lado! Próximos do destino, o capitão desce eufórico para cumprimentar toda a gente. E agradecer! Agradece muito, porque está convencidíssimo de que foi a fé daquelas pessoas que impediu o naufrágio!

A história poderia ser só de tragédia, mas foi-me contada a sorrir!

Se o novo vírus se assemelha em muito à peste bubónica de 1343-53, que matou cerca de 200 milhões de pessoas, creio ser importante tirar proveito do que temos hoje para fazer a diferença que marcará as gerações vindouras. Oxalá, as próximas contem esta história como sendo de enorme sucesso e orgulho daquilo que nos caracteriza enquanto comunidade humana.

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