Atletas a meio gás, médicos a tempo inteiro

Com os campeonatos parados e as necessidades crescentes de profissionais de saúde no activo, algumas figuras do desporto nacional transformaram a covid-19 no principal adversário nas próximas semanas.

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No mundo do desporto, a covid-19 está a colocar em stand-by várias carreiras, mas não para todos. Frederico Varandas, presidente do Sporting, será o mais mediático rosto do desporto a dar o contributo ao país como médico, mas a linha da frente do combate ao surto conta também com nomes sonantes de diferentes modalidades. 

Diogo Correia, actual jogador do Galitos – já passou também pelo FC Porto e pelo Algés –, concilia a primeira divisão do basquetebol nacional com a medicina e é um dos “senhores doutores” que, com o desporto em modo pausa, se juntou aos colegas médicos como mão-de-obra nos serviços de saúde.

E explica ao PÚBLICO que, com as provas paradas, está a 100% como médico, embora, nos períodos “normais”, encaixe os treinos e os jogos do Galitos fora do horário de trabalho. Como se concilia a medicina com a primeira linha do basquetebol nacional? É uma missão espinhosa.

“Não tem sido fácil e, à medida que vou avançando na vertente profissional, acaba por se tornar mais difícil, obrigando a uma elevada flexibilidade e adaptação de horários. Felizmente, tenho tido a sorte de, no meu local de trabalho, contar com o apoio e a compreensão dos meus superiores, permitindo estes ajustes de horários que tornam possível ir conciliando as duas actividades”.

E explica o que tem sido a recente luta contra o novo coronavírus. “Só nestas duas últimas semanas é que se tem verificado um maior impacto. Tem havido alteração da nossa rotina habitual, privilegiando, sobretudo, a vertente do teletrabalho dentro da própria unidade, de forma a darmos resposta às situações urgentes e/ou que possam ser suspeitas de covid-19. Infelizmente, o esperado é que, no decorrer das próximas semanas, a procura dos cuidados de saúde primários e secundários venha a aumentar, esperando todos nós que não só a minha unidade, mas todo o SNS, estejam preparados para este difícil desafio que iremos enfrentar”.

Outro atleta de topo ajudar na luta contra a covid-19 é Hugo Gaspar, internacional português de voleibol. O capitão do Benfica explicou o que vive actualmente. “Também eu estarei na linha da frente, a ajudar todos os que precisem, muitas vezes com o receio de que em casa tenho a família à espera da minha chegada são e salvo”, comentou, citado pelo Benfica.

E detalhou ao Record como concilia o trabalho como médico e a necessidade de se manter em forma, para o caso de a época desportiva regressar em breve. “Neste momento temos um plano de treinos para ser feito em casa. Os nossos preparadores físicos e equipa técnica mandam os planos por e-mail, WhatsApp ou por mensagem e cada atleta faz o respectivo plano em casa. E cumprimos, assim, as indicações de ficar o máximo de tempo em casa ou em isolamento”.

Atletas olímpicos torcem por fora

Outros atletas há que, com as carreiras desportivas em fases fulgurantes, colocaram a medicina em pausa e lutam de fora, como todo o país. João Souto, hoquista do Sporting, explicou ao PÚBLICO que está “100% focado no hóquei em patins”. “Como tal, estou a cumprir a minha missão no combate ao novo coronavírus, mas a partir de casa, em isolamento social”.

Também a médica e canoísta olímpica Francisca Laia garante estar, “para já, a 100% no desporto”, tal como Marta Onofre, do salto com vara, que colocou, nos últimos quatro meses, o projecto olímpico como prioridade.

“Estive a fazer urgências até Novembro do ano passado e terminei nesse mês, para me preparar da melhor forma para estes Jogos Olímpicos. Este ano estava reservado para treinar o máximo para os Jogos e estudar para ingressar na especialidade. Estou, por enquanto, afastada, mas ao corrente de todas as notícias e em comunicação com os meus colegas”, garante ao PÚBLICO a atleta do Sporting. E deixa um apelo.

“Um dos aspectos que mais me preocupa é a enorme falta de EPI (equipamento de protecção individual). Devemos procurar proteger ao máximo os nossos profissionais de saúde, para prevenir que muitos deles adoeçam e ficarmos, assim, com maior dificuldade no controlo desta pandemia. É extremamente importante consciencializar todos os portugueses acerca da gravidade desta situação e da responsabilidade civil de cada um”. “É imprescindível que cada um faça a sua parte, por favor fiquem em casa, saiam apenas para o essencial”, disparou, ao PÚBLICO.

Elise Chabbey: do caiaque ao ciclismo, passando pelo hospital

Entre os vários desportistas de topo com formação em medicina há um caso especial, que chega do estrangeiro. Elise Chabbey é uma mulher de vários ofícios e, mesmo a nível desportivo, não se fica pelo ciclismo, a modalidade que agora pratica.

Em 2012, nos Jogos Olímpicos de Londres, Chabbey participou como… canoísta. A vertente escolhida pela atleta suíça não foi a mais usual em Portugal, o sprint, mas sim o slalom de caiaque, em águas revoltas. Um desporto muito exigente e que exigiu demasiado de Chabbey: a atleta ficou-se pelo 20.º lugar na qualificação, falhando o acesso às meias-finais.

Em quatro anos de carreira, os resultados de Chabbey nas vertentes individuais foram modestos: um 14.º lugar numa prova nos Europeus sub-23 é o melhor que tem para mostrar. Em 2013, depois de quatro anos pouco produtivos, Chabbey mudou de ramo. Não escolheu outra disciplina da canoagem nem mesmo outra modalidade no mundo do desporto. Optou, sim, pela… medicina.

Formou-se e, com a impossibilidade de o conciliar com a canoagem, foi fazendo corrida, para manter a forma. Um hábito de fitness que lhe deu bagagem para experimentar o ciclismo, desporto maioritariamente focado na capacidade física.

Os resultados apareceram rapidamente, fazendo pódios nos campeonatos nacionais da Suíça, e apareceu a decisão. “Acabei o curso de medicina no ano passado, mas decidi congelar o meu ano de estágio, considerando que vêm aí os Jogos Olímpicos em Tóquio e os Mundiais”, disse, em entrevista ao site Velonews. E detalhou o plano: “Percebi que posso ser médica durante toda a vida e que posso fazer isso esperar até ter conquistado primeiro os meus objectivos na bicicleta”.

Mas alguém trocou os planos a Elise Chabbey. Mais concretamente alguém chamado Covid-19, o novo coronavírus. O eclodir da pandemia fez de Chabbey um “bem” precioso para a medicina, em geral, e para o Hospital Universitário de Genebra, em particular.

“Primeiro, chamaram-me para ajudá-los, nem que fosse durante uma ou duas semanas”, explicou a atleta de 26 anos, acrescentando: “Mas há tantos casos a surgir que, considerando a situação actual no hospital, decidi ficar. Posso sair quando quiser, mas percebi que sou mais útil aqui do que se estivesse na minha bicicleta”.

Chabbey assume que, fora das horas extraordinárias que faz no hospital, ainda vai treinando qualquer coisa. “Temos de aceitar que esta temporada vá ser assim. Primeiro, fiquei chateada por cancelarem as provas de ciclismo, mas, agora que aqui estou, percebo a seriedade do problema. E isto é maior do que o desporto”.

Ainda não há certezas sobre o que acontecerá à temporada de ciclismo, mas há uma garantia: que Chabbey parece estar a tirar prazer do mundo para o qual se formou e, com Tóquio 2020 cancelado, nada garante que a suíça regresse à equipa Bigla-Katusha nos próximos tempos.

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