E depois da pandemia

O efeito em escala de todos nós, munidos deste novo hábito que é saber agora trabalhar à distância, é fácil de calcular. Se cada pessoa ficar um dia útil em casa em dias alternados, o trânsito desce grosso modo 20%. Por outro lado, o nosso tempo cresce em quantidade e em qualidade. E se forem dois dias por semana? E se fosse possível serem três dias por semana? E se acrescentarmos o ensino a esta equação?

A calamidade que atinge quase todos os países não tem paralelo em nada que a maior parte de nós tenha até hoje vivido, com uma gravidade cujas consequências não são possíveis de medir, a começar pelas vidas humanas perdidas.

Mas a pandemia, tal como começou, também irá acabar, é sempre assim, as desgraças não perduram para sempre, e muito do que era a nossa vida irá voltar ao mesmo de sempre, voltaremos às praias e às esplanadas, aos concertos e aos centros comerciais, o convívio entre as pessoas retornará e as ruas encher-se-ão de novo de gente.

No entanto, uma hecatombe desta dimensão implica sempre alterações no nosso modo de vida, e nem todas essas alterações são necessariamente negativas –​ normalmente aprendemos coletivamente com os erros e damos um passo em frente em termos evolutivos. É assim em todas as crises, o mundo que emerge depois traz sempre aspetos positivos só possíveis de alcançar porque houve crise, porque as pessoas se viram obrigadas a criar novos hábitos.

Desta vez, a clausura que a maior parte de nós teve involuntariamente de adotar trouxe uma série de desafios inesperados, que também são oportunidades, como o recentrar das atenções na unidade familiar, saber viver sem ser na vertigem de compromissos encavalitados uns em cima dos outros, planear a vida em casa como quem planeia a vida no local onde se exerce a profissão, e trabalhar a partir de casa como quem o faz no local habitual de trabalho.

E, por paradoxal que pareça, apesar de todas as malfeitorias que nos traz, nada disto teria sido possível de alcançar sem a covid-19. O maldito vírus vai obrigar-nos a mudar, marcando de algum modo uma disrupção na forma como a generalidade das pessoas encara a relação entre o sítio onde vive, o sítio onde trabalha e a forma como alterna entre um lado e o outro.

Em concreto, este infortúnio disciplinou-nos nas nossas próprias casas, locais antes mais propensos ao descanso e ao ócio, delegou em nós – responsabilizando-nos – a gestão de um tempo que nos locais de trabalho era muitas vezes responsabilidade de outros, obrigou-nos a interagir com a tecnologia (que já existia) e com os gadgets para conseguirmos trabalhar à distância com eficiência, criando novos hábitos que vão perdurar após este recolher obrigatório.

Nunca tanto se ouvira falar em plataformas de videoconferência como o Skype, o Anymeeting, o Teams ou o Zoom, nunca os webinars tinham sido tão utilizados, nunca tanto tínhamos aproveitado tempos mortos para fazer desporto em casa com base em plataformas, assistido a missas virtuais, nunca as compras online tinham assumido a preponderância que hoje assumem, e a tecnologia já por aqui andava, bastava o clique de sermos obrigados a ficar em casa.

E esta nova destreza em fazermos remotamente aquilo que é indiferente do local onde nos encontramos, este experimentar de algo que deriva de estarmos inamovíveis, não vai ser indiferente nas nossas escolhas futuras. Por que razão começamos a trabalhar todos à mesma hora, enfrentando as mesmas filas de trânsito de sempre e acabamos todos à mesma hora com idêntico exercício de masoquismo? Por que razão não trabalhamos remotamente até uma certa hora e só então seguimos para o escritório? Ou, então, porque razão não trabalhamos um ou dois dias a partir de casa?

O efeito em escala de todos nós, munidos deste novo hábito que é saber agora trabalhar à distância, é fácil de calcular. Se cada pessoa ficar um dia útil em casa em dias alternados, o trânsito desce grosso modo 20%, o mesmo acontecendo com a poluição que deriva dos transportes e com a necessidade de espaços de escritório, só para citar ganhos mais imediatos. Por outro lado, o nosso tempo cresce em quantidade e em qualidade. E se forem dois dias por semana? E se fosse possível serem três dias por semana? E se acrescentarmos o ensino a esta equação?

Num mundo crescentemente urbano, onde as cidades são cada vez maiores e os espaços rurais se vêem com cada vez menos gente, estamos a chegar ao limite dos recursos de que dispomos, sendo que um desses recursos depende de cada um de nós em concreto, o tempo de que dispomos. Criámos um modo de estar que não é sustentável, os recursos são finitos, o ambiente não aguenta mais, e temos por isso de encontrar soluções inteligentes para mantermos a nossa qualidade de vida sem comprometer as gerações seguintes.

A chave para isso está na tecnologia e na sua adoção. Assistimos a esquemas crescentes de economia partilhada (Airbnb, Uber, Netflix), conceitos como a mobilidade autónoma estão no horizonte para mudar o nosso dia a dia, pode ser que esta experiência traumática de teletrabalho seja a faceta positiva deste terrível vírus, marcando um virar de página na nossa relação com o mundo do trabalho, com reflexos decisivos nas cidades e na qualidade de vida de cada um de nós.

É preciso pensar positivo, é a tecnologia que possibilita a nossa clausura e o controlo da pandemia, e a tecnologia vai continuar disponível após a pandemia. Vamos aproveitar o que aprendemos nestes dias?

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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