Estado paga 100 euros por teste da covid-19 aos privados

Apesar de estarem a abrir todos os dias centros de rastreio, o número de análises realizadas nos últimos dias desceu e, no domingo, ficava abaixo dos dois mil exames, menos de metade daquilo que o Governo dizia ser a capacidade actual. Uma grande parte das análises está a ser paga pelos particulares, que são obrigados a desembolsar entre 100 e 150 euros para saber se estão infectados com o novo coronavírus.

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Tiago Lopes

O Estado está a pagar 100 euros por cada teste para detectar a infecção pelo novo coronavírus aos laboratórios privados com que possui acordos. Isso mesmo foi confirmado ao PÚBLICO por responsáveis de dois dos três laboratórios que estão a trabalhar para as autoridades públicas de saúde. Duas administrações regionais de saúde, a de Lisboa e a do Norte, recusaram-se a precisar o valor, apenas referindo, esta última, que o montante pago é o mesmo para todos os parceiros.

Desde quarta-feira passada que têm estado a abrir em todo o país vários centros de testes da covid-19, a maior parte dos quais parcerias entre laboratórios privados, câmaras municipais e autoridades regionais de saúde. No entanto, uma grande parte das análises que estão a ser realizadas nestes centros e em instalações privadas dos próprios laboratórios é paga pelos particulares, que são obrigados a desembolsar entre 100 e 150 euros para saber se estão infectados com o novo coronavírus.

Isto porque para fazerem os testes gratuitamente os utentes têm de ser encaminhados pela Linha SNS24, cujos problemas de congestionamento têm sido amplamente denunciados, ou pelos centros de saúde. Neste último caso, contudo, é necessário que a suspeita da covid-19 seja validada por uma linha de apoio aos médicos, que também tem funcionado com muitos constrangimentos.

Nesta segunda-feira de manhã, o secretário de Estado da Saúde, António Sales, precisou que havia capacidade para realizar 4000 testes por dia: 2500 no Serviço Nacional de Saúde e 1500 no privado. Ao fim do dia, o primeiro-ministro garantia que o país tinha capacidade para realizar 30 mil testes por dia. “Temos neste momento condições para fazer dez mil testes no sector público e 20 mil no sector privado. Estão encomendados 280 mil testes rápidos. Esta semana, chegarão 80 mil”, explicava António Costa.

O que nenhum dos governantes disse é que os testes que de facto estão a ser realizados ficam muito aquém dessa capacidade e que, apesar do alegado reforço neste âmbito, o número de exames realizados até diminuiu nos últimos dias. Os dados dos boletins diários da Direcção-Geral da Saúde permitem concluir que no domingo foram testadas 1895 pessoas, menos 33 do que no dia anterior. Na sexta-feira, tinham sido 2122 as pessoas sujeitas a análises para detectar a infecção pelo novo coronavírus.

O professor catedrático da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, Manuel Santos Rosa, não estranha que assim seja. O médico, que está envolvido no lançamento do segundo centro de testes totalmente público (o outro abriu em Faro no domingo), em Coimbra, explica que quando há epidemias novas é normal que a capacidade de resposta para detectar a nova infecção seja baixa, o que obriga a restringir os critérios de análise. “À medida que aumenta a capacidade de resposta, os mecanismos de validação vão-se ajustando”, acredita.

As fragilidades dos testes rápidos

Santos Rosa considera positivo que Portugal tenha comprado testes rápidos, mas não ignora “as fragilidades” deste método que detecta os anticorpos que o organismo fabrica contra a covid-19. O médico Germano de Sousa, administrador de um dos três laboratórios de análises que estão a trabalhar com o Estado, considera a compra destes testes uma falácia. “Isto é vender gato por lebre. Os anticorpos só surgem no organismo oito dias após o início da doença”, sustenta. Antes disso, a pessoa pode estar doente, mas o teste não detecta.

O primeiro centro de rastreio a ser lançado foi o do Porto, uma parceria entre a Administração Regional de Saúde (ARS) do Norte e a multinacional Unilabs, que contou com o apoio da câmara local. Na quarta-feira, na abertura do centro, no Queimódromo, os parceiros do projecto reforçaram a mensagem quanto à finalidade do centro: o alívio da pressão existente no SNS. O autarca da cidade, Rui Moreira, aproveitava os microfones dos jornalistas para falar directamente aos cidadãos do Porto “Não devem vir para cá, devem inscrever-se através do SNS, são eles que fazem a triagem e foi essa a articulação feita também com a ARS-Norte”, dizia. O mesmo foi enfatizado pelo CEO da Unilabs Portugal, Luís Menezes, ex-deputado do PSD e filho do antigo líder social-democrata.

Os dois omitiram, contudo, uma informação que agora o PÚBLICO confirmou: esse rastreio não é exclusivamente feito a doentes indicados pelo SNS. No site do laboratório é possível, mesmo através de um chat e em poucos minutos, fazer a marcação para ir ao Queimódromo do Porto, pagando, para isso, 100 euros. Os centros coordenados pela Unilabs – além deste, esta rede de laboratórios tem espaços em Lisboa, Gaia, Braga e Viseu, estando a preparar a abertura de mais duas unidades – “estão abertos a públicos e privados”, esclareceu fonte oficial da empresa, garantindo, no entanto, que atendem “preferencialmente” quem é referenciado pelo SNS. “Quando temos capacidade para fazer mais testes além desses, fazemos. Mas a maioria é pública.”

Uma realidade diferente é transmitida pelo presidente do conselho de administração de um outro laboratório de análises, o Germano de Sousa. O antigo bastonário da Ordem dos Médicos explicou ao PÚBLICO nesta segunda-feira à tarde que nas 24 horas anteriores tinham sido realizados pela sua empresa em todo o país perto de 500 testes à covid-19, pelo menos 300 dos quais pagos pelos próprios utentes. Germano de Sousa acredita que o número vai subir em flecha nos próximos dias, já que apenas nesta segunda-feira abriram duas unidades de rastreio na região de Lisboa, uma na Escola Básica Quinta dos Frades, no Lumiar, e outra em Cascais.

Como explica a Câmara do Porto o envolvimento num projecto que beneficia os portuenses mas também um laboratório privado? A autarquia garante que o seu envolvimento é apenas “logístico”, com a disponibilização do espaço, não havendo “qualquer produção de despesa própria”. Remetendo para a Unilabs e a ARS-N quaisquer esclarecimentos quanto à forma como “chegam [ao Queimódromo] os suspeitos de contágio e como para lá são encaminhados”, a autarquia de Rui Moreira não esclarece se sabia que o centro ia também receber utentes com prescrições privadas: “O que sabemos e foi dito também nessa ocasião é que nenhum utente deveria ir ao Queimódromo sem estar referenciado, e que os suspeitos de contágio encaminhados pelo SNS não pagariam qualquer valor”, responde o gabinete de comunicação.

A ARS-Norte, que coordena neste momento três centros de rastreio (um no Porto, outro em Gaia e um em Santa Maria da Feira), tem utilizado “critérios epidemiológicos” para definir onde e quando abrir estes espaços. Ou seja, instala-os em geografias onde haja mais casos e onde seja mais urgente testar, escolhendo laboratórios “certificados” pelo Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge. A ARS-N não esclarece quanto paga aos laboratórios por teste, informando apenas que é o “valor definido pela convenção”, deixando também por esclarecer se os centros que coordena recebem apenas utentes do SNS. O importante neste momento, sublinham, é diagnosticar de forma “precoce” para “travar cadeias de transmissão”.

Por sua vez, a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo informou que, além da unidade de rastreio no Lumiar e de outra no Parque das Nações, haverá “mais vinte centros” na região. Até ao final desta semana deverá estar fechada a decisão sobre o local onde esses espaços serão instalados, devendo depois abrir com brevidade.

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