Por uns momentos de felicidade

Precisamos, mesmo, de uns momentos (por poucos que sejam), para nos afastarmos do horror e do medo.

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Sebastien Gabriel/Unsplash

Que não sugira este título uma despreocupação ou uma inconsciência. Nem tão-pouco um daqueles pensamentos de livro de auto-ajuda que apela a que sejamos gratos e “contentinhos”, perante toda e qualquer fatalidade, dessas (destas) que, de vez em quando, se nos surgem nas esquinas da vida.

Mas agora precisamos, mesmo, de uns momentos (por poucos que sejam), para nos afastarmos do horror e do medo.

Uns momentos para folhear o nosso álbum dos momentos felizes: a areia quente sob os pés, nos passeios pela praia e o pôr-do-sol no fim do mar, nesses dias que, de tão longos, entravam pela noite dentro e se confundiam com ela, no sal que nos enfeitava o corpo.

Os ouriços das castanhas, caídos no chão do Outono amarelecido dos campos, e as cerejeiras em flor, cobrindo a Primavera de uma neve doce, como o algodão das feiras.

O carrossel de mil voltas que nos deixava a cabeça num turbilhão de emoções e a montanha russa que, subindo e descendo, nos desmanchava o estômago, nessa suprema vergonha de, afinal, sermos bem menos corajosos do que apregoáramos nas nossas fanfarronices adolescentes.

Ou o primeiro beijo dado, por entre risos tímidos e apatetados, num jogo de bate-o-pé (será que ainda alguém se lembra do jogo do bate o pé?).

E esse outro beijo, já não infantil, trocado às escondidas, nas traseiras do muro da escola, com aquele que seria — jurávamos nós — o amor da nossa vida (e de quem hoje recordamos a custo, e apenas vagamente, o nome).

Ou as mãos que se tocaram, tão tímidas, no escuro do cinema, numa descarga de alta voltagem que, por momentos, apagou todo o mundo que estava para além dessas mãos.

A memória do primeiro sorriso dos nossos filhos, do palreio feliz que nos chegava de dentro do berço, e dos seus incipientes passitos, trôpegos e hesitantes.

O calor suave e seguro das mãos das nossas avós, preparando-nos um lanche de pão com marmelada e uma caneca de leite.

A imagem de dois corpos que, fundindo-se, se fizeram um.

As gargalhadas, as jantaradas, os segredos murmurados, os abraços que serviram para curar zangas e os outros que ajudaram a apagar as lágrimas.

E, ao folhear o álbum destes momentos felizes, estaremos a construir, na nossa retina e na nossa alma, as memórias do futuro que haveremos de viver.

Um futuro em que a areia vai, de novo, arranhar-nos os pés e em que o sol nos há-de aquecer o corpo, para depois, cansado já de iluminar o dia, acabar por se aninhar naquele ponto longínquo onde acaba o mar.

Em que o sumo das melancias nos escorrerá, mais vezes, pelo queixo, por entre risadas, nos piqueniques no pinhal.

Em que as mãos voltarão a entrelaçar-se no cinema, enquanto as cabeças se encostam aos ombros nas cenas mais românticas, e se jura que o amor vai ser para sempre.

O futuro em que voltarão os abraços, os amuos, os risos e os segredos partilhados.

Em que os baloiços, no parque, se hão-de erguer em gargalhadas límpidas e cristalinas, na vertigem de quase conseguirem tocar o céu.

As memórias de um futuro que gravaremos na nossa retina e na nossa alma e que, nem que seja por uns breves momentos, nos hão-de fazer vencer o medo e nos hão-de fazer felizes.

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