Verdade e consequências da declaração do estado de emergência

Continuam a ser necessárias lideranças políticas capazes, mas cada vez mais a força moral das pessoas deverá guiar a política, como um exercício a pensar em toda a sociedade e não apenas numa parte da sociedade, única forma de gerar confiança generalizada e garantir a democracia. Os próximos meses e anos vão ser um sério teste em Portugal e no mundo à validade dos meus argumentos.

A grave crise sanitária e económica que vivemos causada pelo novo coronavírus deu azo ao início de um debate relevante entre nós sobre o significado e as consequências das medidas tomadas para combater a pandemia, em particular o estado de emergência. É de louvar que este debate exista, assim como que as opiniões sejam diversas, porque mostra que vivemos e queremos viver em democracia.

Está em causa saber se a declaração do estado de emergência e as medidas dele decorrentes são politicamente aceitáveis, dado que comportam a restrição de direitos constitucionais. O primeiro-ministro, que não defendia a instauração do estado de emergência, mas algo entre o estado de alerta, já decretado pelo próprio Governo, e o estado de emergência, que poderia ser, porventura, o estado de calamidade decretado, também pelo Governo, em Ovar, veio dizer que as medidas tomadas no âmbito do estado de emergência se destinam a proteger a vida das pessoas, mas que a democracia não está suspensa, mantendo-se o país uma sociedade aberta, de cidadãos livres e responsáveis por si e pelos outros. Ainda segundo o primeiro-ministro, as liberdades de circulação e de iniciativa económica serão restringidas apenas na estrita medida necessária para garantir a saúde pública, podendo tal também acontecer para promover a atividade económica. O discurso do Presidente da República está alinhado pelas mesmas ideias. E os partidos estão todos de acordo sobre a declaração do estado de emergência (só o PCP, o PEV, o deputado único da Iniciativa Liberal e a independente Joacine Katar Moreira se abstiveram). Até Rui Rio, num discurso que muitos viram como patriótico, afirmou que neste momento o PSD não faz oposição, antes colabora com o Governo, em tudo o que for necessário.

A preocupação do primeiro-ministro e de outros relativamente à declaração do estado de emergência é que pudesse implicar uma dissociação entre a proteção da saúde pública e da economia, que acabasse por prejudicar esta. A verdade é que o Governo colaborou com o Presidente na elaboração do decreto que instaurou o estado de emergência, o qual, na prática, é um conceito elástico que permite ao Governo adaptar-se às circunstâncias e fazer o que for necessário.

Se, à esquerda, os argumentos utilizados contra o estado de emergência se prenderam com a necessidade de proteção da economia e a defesa dos direitos dos trabalhadores e dos direitos sociais, à direita, a rejeição da medida deveu-se à crença de que provoca uma limitação perversa de direitos, liberdades e garantias pessoais, assim como ao receio das consequências nefastas daí decorrentes para as empresas, em virtude da paragem dos trabalhadores.

É, porém, factual que a declaração do estado de emergência foi consensual e que a democracia está a funcionar. Acresce que a opinião pública defende a instauração do estado de emergência (90%, segundo um estudo da Marktest), assim como as medidas restritivas até agora adotadas pelo Governo.

É certo que existem divergências nas elites que se expressam na comunicação social, mas num quadro de defesa da Constituição e da democracia. Prova disso é que tanto constitucionalistas de esquerda como de direita reconhecem que a limitação de direitos na presente situação tem de ser proporcional e adequada. É verdade que defendem posições contrárias relativamente à legitimidade ou oportunidade da instauração do estado de emergência, por não valorizarem os direitos individuais da mesma forma, mas é normal que em democracia tal aconteça.

O perigo não está na limitação temporária de determinados direitos fundamentais, por razões de interesse geral, mas na ideia errónea de que a democracia funciona de forma diferente em estado de exceção e em estado de normalidade, quando o que é expectável é que em situações extraordinárias a democracia seja mais forte. É por uma razão de fundo que não se restringe a liberdade de expressão neste período. E os partidos não estão obrigados a concordar em tudo. Porém, o Presidente da República ou o primeiro-ministro falam sempre em nome de todos e precisam de se sentir confirmados pela força moral da sociedade.

Ora, as pessoas anteciparam a restrição dos seus próprios direitos, resguardando-se em casa, de acordo com a informação que tinham. A tese de que os políticos agiram por pressão da opinião pública ou das redes sociais não faz sentido. É normal o legislador utilizar na definição dos institutos jurídicos palavras de uso comum. O estado de emergência constitucional decorre da verificação da existência na vida real de situações de emergência, às quais tem de se dar uma resposta pronta e eficaz, por forma a evitar males maiores. Sendo a saúde pública um bem coletivo, o que justifica a intervenção dos poderes públicos em substituição dos particulares é a sua maior capacidade para mobilizar recursos e defender os interesses de todos, ainda que para tanto cobrando impostos ou restringindo, pontual e justificadamente, determinados direitos individuais.

A assimetria na capacidade de intervenção do Estado e da sociedade já foi maior do que é hoje, mas ainda subsiste, sem prejuízo do papel essencial da sociedade no combate à pandemia ao lado do Estado, porque as virtudes cívicas são fundamentais.

Existe ainda um erro em algumas análises da atual situação política e social que consiste em confundir a realidade com as consequências da crise. A realidade denota uma situação de emergência que tem muito mais de estrutural do que de excecional: as pessoas estão a responder à crise com uma alteração de comportamentos – por exemplo, nas decisões de ficarem em casa e de trabalharem e estudarem a partir de casa. Ora, esta situação é incompatível com uma gestão tradicional das crises políticas e sociais em que o aparelho do Estado prescinde da sociedade. A realidade exige uma nova teoria política e constitucional que vá para além do Estado e considere o papel da sociedade, seja na previsão e combate às catástrofes, que são normais no atual contexto de globalização, ou na definição de políticas públicas adequadas aos novos desafios globais, que impõem uma mudança de comportamentos. Continuam a ser necessárias lideranças políticas capazes, mas cada vez mais a força moral das pessoas deverá guiar a política, como um exercício a pensar em toda a sociedade e não apenas numa parte da sociedade, única forma de gerar confiança generalizada e garantir a democracia. Os próximos meses e anos vão ser um sério teste em Portugal e no mundo à validade dos meus argumentos.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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