A minha mansão

Quantas vezes não temos ouvido frases como: “Não trago problemas do trabalho para casa.” Pois hoje vivemos e viveremos uma nova fase dos nossos dias. O trabalho em casa.

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No final desta corrida, cansados e sorridentes por termos cruzado a meta ainda direitos e sãos, vamos perceber quão grande tem sido a nossa casa. No meio de novas receitas, limpezas agendadas há mais de uma década que finalmente se concretizam, descobertas de última hora no que à roupa diz respeito, vamos ocupando e conhecendo melhor a nossa casa. E a nossa casa somos nós.

Antes da quarentena, a casa já estava cheia. Tem estado, com aquilo que temos trazido ao longo dos anos. Se está cuidada ou não, é outro tema. Vamos fazendo o melhor que podemos. Mas está cheia. A nossa casa são os nossos problemas, as nossas ansiedades, as nossas tristezas e as alegrias.

Quantas vezes não temos ouvido frases como: “Não trago problemas do trabalho para casa.” Pois hoje vivemos e viveremos uma nova fase dos nossos dias. O trabalho em casa. Aprender a responder aos compromissos, a cumprir horários e, uma vez por outra, a mandar um colega dar uma volta ao bilhar grande enquanto de esguelha reparamos que o puto não tarda manda um vaso ao chão. É um novo dia-a-dia, é um novo mundo. 

O desafio de hoje será separar e conseguir arranjar momentos dentro do mesmo espaço. O momento profissional e o momento pessoal. Entender que depois de arrumar uma panela, há que reunir com a Paula do Marketing; que depois de lavar os dentes, há que fechar contas; e que depois de o Sherlock ter ido à rua, há que dizer à Fátima para avançar com o protocolo para o cliente. É uma nova vida, uma nova forma de estar.

Em cima de tudo isto, a nossa casa vai ganhando espaço e vai ganhando outras memórias. Em cima disto, o nosso tempo, os nossos pensamentos, as nossas lágrimas e os nossos berros. Em cima disto, a gargalhada de última hora. Em cima disto, uma tempestade para cuidar. A nossa casa será o farol e a ondulação. A nossa casa será as águas quietas de um porto e o motor do barco, repouso e andança, calmaria e mudança.

Lia no outro dia um autor a falar sobre Pascal como um filósofo e teórico do aborrecimento quando afirmava que todos os problemas da Humanidade decorrem da incapacidade de o ser humano ficar tranquilamente sentado sozinho no seu quarto. Quando partilhei esta frase com amigos, muitos responderam: “Claramente Pascal não tinha filhos, senão a conversa seria outra”.

Pois bem, deixando de lado o apaziguamento do discurso, trata-se de uma afirmação que nos pretende mostrar uma realidade muito concreta: a nossa dificuldade em estar sossegados. Nem todos, é certo, mas grande parte. E mesmo aqueles que tiram o melhor partido da sua casa e encontram profundo prazer no reencontro com o seu lar, são capazes de se aproximar de uma outa tendência. A tendência para o desconforto é grande. Para o desconforto, para a inércia e sobretudo para o silêncio. Já por várias vezes escrevi sobre o silêncio e esta é sempre uma boa altura para afirmá-lo.

O mundo está a respirar quando recolhidos. Esta coisa estranha e invisível está a mostrar realidades bastante visíveis, umas palpáveis ou até audíveis. O silêncio em nossas casas é o canto dos pássaros. O confinamento humano é a propagação da natureza.

E eis-nos em casa. Há quem tenha jardim, um terraço, há quem nem marquise tenha. Há quem tenha que dar cerca de cem passos da sala à cozinha e há quem o faça em dois. Umas mais iluminadas que outras, não importa. A nossa casa é do nosso tamanho. É a nossa mansão. Uma casa onde afinal cabe tudo, desde o trabalho ao amor, da rotina ao lazer em todo o seu esplendor. A nossa casa é agora tempo e lugar. Há que arejá-la. 

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