Forças de segurança egípcias torturam crianças

A Human Rights Watch recolheu relatos de 20 crianças que dizem ter sido espancadas e torturadas, algumas com choques eléctricos. Amr Magdi, investigador desta organização, diz que o país está numa encruzilhada.

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Represetação de uma apresentação de menores perante juizes militares HRW
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Desenho de uma tortura a que é submetida uma criança nas prisões egípcias HRW

As forças de segurança egípcias estão a deter, a torturar e a forçar o desaparecimento de centenas de crianças, enquanto os procuradores ignoram as violações de direitos humanos e os juízes as condenam a prisão perpétua ou a mais de uma dezena de anos de prisão, denunciou a Human Rights Watch. O país está numa encruzilhada e tudo pode acontecer por a repressão não enfraquecer e o descontentamento estar a alastrar. 

“As crianças são espancadas e mantêm-nas, com poucas roupas, quase nuas, em condições duras. Também lhes fazem waterboarding [simulação de afogamento], mas o que vimos com mais frequência no sistema prisional egípcio são electrocussões. Muitas crianças descrevem ter sido electrocutadas com tasers e cabos eléctricos”, explicou ao PÚBLICO Amr Magdi, investigador para o Médio Oriente e Norte de África da Human Rights Watch. “Quando são presas, estas crianças não são vistas como crianças, mas como dissidentes políticos e, por isso, recebem o mesmo tratamento que os adultos”. 

É a conclusão do relatório No One Cared He was A Child (ninguém quis saber que ele fosse uma criança) da Human Rights Watch, em parceria com a Belady: An Island for Humanity e publicado esta segunda-feira. Com base nos testemunhos de 20 crianças, das quais 14 foram electrocutadas na língua e nos genitais, os investigadores concluíram, diz Magdi, que o que “está a acontecer é claramente um padrão, é uma prática de tortura muito comum no Egipto. Há centenas de crianças presas e se falarmos de adultos, a imagem é bastante pior”. 

Depois do golpe de Estado que em 2013 derrubou o Presidente democraticamente eleito, Mohamed Morsi, o general Abdel Fattah al-Sisi abandonou as vestes militares e assumiu a presidência. Fortaleceu o aparelho repressivo já criado e ordenou perseguições em massa de dissidentes políticos, fossem islamitas ou laicos, para “repor a lei e a ordem”. As forças de segurança varreram as ruas, sobrelotando as prisões e os tribunais com julgamentos com mais de 100 arguidos de uma só vez e com poucas sessões.

O homem forte do Egipto teve o apoio silencioso, quando não explícito, das potências ocidentais, como os Estados Unidos, a França ou a Itália, que lhe fornecem dinheiro para ou lhe vendem armas. “Estes países têm de parar de fornecer armas e tecnologia ao Egipto, pois sabem que tipo de parceiro é. É conhecido como um dos piores da região, e até do mundo, no que diz respeito a violações dos direitos humanos, e sem que haja qualquer tipo de responsabilização”, denunciou Magdi. 

Julgadas como adultos

Quem for suspeito de se opor ao regime é detido e corre o risco de ser torturado, independentemente da idade que tiver. “Algumas das crianças foram detidas por participarem em protestos, por pertencerem a uma família onde o pai ou irmão mais velho fazem parte de um grupo político ou simplesmente por terem estado no local de um incidente”, explica Magdi, referindo que as detenções são arbitrárias, sem mandado judicial, e que muitas das vezes as suas famílias desconhecem o paradeiro das crianças por semanas, quando não meses. 

“Os relatos angustiantes dessas crianças e das suas famílias revelam como a máquina de repressão egípcia tem submetido crianças a graves abusos”, disse em comunicado Aya Hijazi, co-director da Belady. “As autoridades egípcias agem como se estivessem acima da lei no que diz respeito a crianças detidas”. 

Por exemplo, duas crianças relataram terem ficado suspensas pelos ombros em celas, deslocando-os. Uma delas, então com 14 anos, contou apenas com a ajuda de um outro detido, médico. Uma outra, chamada Hamza H. e com 14 anos, foi obrigada a ficar várias horas de pé, “pela ponta dos pés com lâminas afiadas colocadas sob os calcanhares”, sendo mais tarde condenado a dez anos de prisão. 

Meses depois de estarem detidas, as crianças acabam mais cedo ou mais tarde por ser presentes a um procurador, sem que este faça algo para investigar os abusos de que foram vítimas, mesmo quando os denunciam e os corpos têm claros sinais de violência. “Os procuradores têm sido cúmplices neste tipo de abusos. Quando as crianças lhes são apresentadas não investigam as acusações de tortura, a data em que foram detidas e o período de desaparecimento forçado”, continuou o investigador. 

Quando crianças são detidas em grupo e passam meses (ou anos) em detenção, basta que uma faça 18 anos para que todas as que lhe estejam associadas no processo sejam julgadas como adultos por terrorismo. “A lei sobre as crianças tem uma grande lacuna que permite serem julgadas por tribunais militares, pois quando uma criança tem um cúmplice maior de idade, podem ser julgadas como adultos pelo crime de terrorismo”, explicou Magdi. “Algumas destas crianças foram condenadas à morte antes de os juízes perceberem que eram crianças. Aí retiraram a condenação e deram-lhes 15 anos de prisão”, continuou. Pelo menos 13 crianças foram condenadas à pena de morte desde Maio de 2019, de acordo com um estudo referido pelo relatório da Human Rights Watch. 

São poucos os sistemas políticos que se mantêm exclusivamente pela repressão e medo generalizado e, com a crise económica que aí vem, fruto da pandemia de covid-19, o Egipto poderá sofrer instabilidade política. Já têm havido protestos a exigir a saída de Sissi do poder e a mão dura tem sido a resposta. Mas o descontentamento vai-se alastrando aos poucos e ninguém sabe o que esperar. 

“Há espaço para a situação melhorar, pois tem sido muito má nos últimos anos. Ou a situação explode ou melhora e todos os cenários estão em cima da mesa. É um país onde qualquer prática democrática é proibida, seja a de reunião ou de expressão. Pode haver protestos ou um golpe militar, ninguém sabe. Tudo está em aberto”, disse o investigador da Human Rights Watch. 

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