Dinheiro, poder e blockchain

A Libra promete, então, transformar o mundo num sítio mais justo, onde as pessoas têm acesso a serviços financeiros. Mas será mesmo isto que irá acontecer?

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Este artigo é sobre a Libra e os seus problemas —  tecnológicos — para com a sociedade e para com a economia global.

O anúncio do projecto de Libra, baseado na Suíça (país conhecido por medidas financeiras liberais), em Junho de 2019, depressa obteve a atenção de vários reguladores, como a Federal Reserve, UK’s Financial Conduct Authority, The Financial Stability Board, o grupo G7. As principais críticas ao projecto incluem preocupações relacionadas com a privacidade dos clientes, lavagem de dinheiro e criação de instabilidade financeira. Mas esta é só uma primeira análise, que não tem em conta muitos dos detalhes tecnológicos. 

No dia 16 de Julho de 2019, o Senado americano pediu ao responsável pelo projecto da Libra, David Marcus, que o clarificasse. O Senado não foi particularmente amigável. Veja-se um excerto dessa entrevista, do minuto 24 até ao minuto 28. 

A Libra promete, então, transformar o mundo num sítio mais justo — apesar das muitas críticas —, onde as pessoas têm acesso a serviços financeiros. Mas será mesmo isto que irá acontecer? Alguns autores identificam vários tipos de riscos inerentes à Libra: políticos, financeiros, económicos, e tecnológicos. 

Relativamente aos impactos políticos, a questão da Libra prende-se, sobretudo, com a soberania das moedas existentes. O que acontecerá se alguns países permitirem a existência desta moeda, que é controlada de forma internacional, e outros não? Qual será o impacto deste projecto em países onde, em particular, as economias são fracas, e as moedas muito inflacionadas?

Poderá a Libra tornar-se na moeda de facto? Poderá ser a Libra um motor de mudança, algumas delas potencialmente nefastas, como financiamento do terrorismo e branqueamento de capitais? Que mecanismos é que vão ser implementados para combater isto? Estes aspectos não estão clarificados por parte da Libra Association. 

A governança da Libra Association é semelhante à governança de uma empresa privada que tem vários accionistas. Por exemplo, a associação decide que código é que é executado na blockchain. Na Libra blockchain, através da linguagem de programação “Move”, entidades escolhidas, tal como validadores pertencentes à Libra Association, podem realizar determinadas operações que estão limitadas por um conjunto de regras (como criar ou destruir Libra).

Não é claro, no entanto, como se deverá proceder, caso validadores discordem de uma determinada transacção. Esperemos que o consórcio de empresas privadas com fins lucrativos que operará a Libra não se desvie da sua missão  —  e não me refiro à missão de fazer muito dinheiro. 

Há também riscos financeiros e económicos. Há autores que defendem que a Libra poderia agir como um banco  semi-descentralizado. Como funcionaria? Poderia ser equivalente a um banco central? Se sim, conseguirá a Libra assegurar a transferência de bens, com taxas de câmbio estáveis, de forma rápida, segura e barata, tal como é prometido? Poderá respeitar as extensas regulações que os bancos são obrigados a cumprir? O que é que acontece em caso de fraude ou ciberataque à infra-estrutura e se os utilizadores perderem os bens? Quem se responsabiliza? Quem se assegura que os utilizadores têm mecanismos para recuperar os seus bens? Como coleccionar impostos vindos de transacções efectuadas na libra, que têm como objectivo comprar bens e serviços? 

Há, também, a questão da privacidade dos utilizadores. Será que organizações que tanto exploraram os seus utilizadores, como o Facebook, conseguirão conquistar de volta a sua confiança? 

Certamente, há mecanismos como o regulamento geral de protecção de dados, que tem como objectivo proteger a privacidade dos consumidores. Este mecanismo, introduzido em Maio de 2018, que abrange cidadãos europeus, visa estabelecer um equilíbrio sobre a forma como a sua informação é usada. O direito ao esquecimento também poderá ser difícil de obter, visto estarmos no âmbito de uma blockchain pública. 

Em suma, a Libra enfrenta diversos e complexos problemas em termos de regulamentação. Traz problemas económicos, financeiros, políticos, e tem um longo caminho a percorrer, em termos tecnológicos. É, portanto, improvável que seja lançada a curto prazo. 

Há, claro, o caso em que a Libra tem sucesso e é lançada. Será uma moeda digital global que nos levará a passos (mais) largos para um admirável novo mundo? Será boa ideia deixar que este projecto se desenvolva? Só o tempo dirá, mas uma coisa é certa: a Libra tem um longo caminho a percorrer, e muitos reguladores a enfrentar. 

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