Um tempo revelador

Acontecimentos de excepção, como os que se vivem, são reveladores, tanto servindo para afirmar a generosidade como a avidez, seja junto dos cidadãos ou das elites politicas e económicas.

Os maus momentos puxam pelo melhor de nós. Foi uma das frases que mais ouvimos esta semana. Não estou tão certo disso. As alturas de excepção são por norma reveladoras, pela amplitude, transcendência e impacto directo dos acontecimentos na vida quotidiana, como tem ocorrido com o novo vírus. Mas esse efeito definidor serve tanto para expor generosidade como outras condutas não tão enaltecedoras, seja junto dos cidadãos ou das elites políticas e económicas.

Há quem tenha fortalecido sentimentos de pertença com a sua comunidade, mas muitos estão apenas a adaptar-se por razões de sobrevivência. Há quem vá ao supermercado e traga o indispensável e quem esvazie prateleiras. Há quem continue a trabalhar em prol da comunidade, mesmo pondo-se em risco, e quem pense que existe uma parte da população que é dispensável em nome da eficiência económica. O combate é feito de forma diferente, consoante se fala de países desenvolvidos ou em vias de desenvolvimento, de ditaduras ou democracias, de privilegiados ou desprotegidos que, como em todas as crises, vão ser os mais atingidos.

Hoje vemos imensa gente a afirmar que estaremos apenas perante um intervalo da realidade. Para outros a crise do vírus — como antes se dizia da ambiental ou da financeira — é uma oportunidade de imaginar novos modelos económicos, vínculos sociais e estilos de vida, perante uma globalização que revela a sua face descontrolada e disfuncional. Numa frase, imaginar um mundo pós-capitalismo onde a economia se subordine à política e onde um problema estrutural como o que estamos a enfrentar sirva também para encarar a desigualdade ou a exploração da natureza de outra forma. Que seja. Talvez se possa começar por dizer que a crise de 2008 nunca acabou. Tomou diferentes formas, viajou por diversos continentes, foi amortecida em alguns países e noutros não, mas o mundo nunca mais voltou ao que era. O que o vírus está a fazer é escavar e acelerar esse mal-estar.

Por agora existe uma paz aparente. Apetece até registar, para memória futura, os que esta semana enalteceram o Serviço Nacional de Saúde ou que proclamaram que em primeiro está a saúde pública e não o défice, como se ontem a austeridade que defenderam não tivesse causado mortes, e como se amanhã não irão ser os primeiros a dizer que temos de fazer um esforço colectivo — que atinge sempre os mesmos — para equilibrar contas, mesmo que para isso tenhamos de sacrificar a mesma saúde e os profissionais que hoje tanto elogiam.

É preciso cautela. Não faltam exemplos na história que mostram que estas conjunturas são tantas vezes aproveitadas para impor doutrinas de choque, impulsionando políticas que produzem sistematicamente a desigualdade, aproveitando-se o facto de nestas alturas os cidadãos tenderem a concentrar-se nas emergências diárias da subsistência, confiando muitas vezes em excesso em quem está no poder. Quando se desguarnece o sentido crítico, as elites políticas e económicas podem aproveitar para afirmar a sua lista de desejos mais nebulosos.

Mas também pode acontecer que ideias que pareciam impossíveis até há poucas semanas se tornem perfeitamente praticáveis. Está tudo em aberto. Ninguém sabe o que aí virá. O que esta situação veio mostrar é que a vida é precária em si mesma. Cabe-nos a nós não a precarizar ainda mais, redesenhando a economia, apostando em modelos mais regenerativos e colaborativos, capazes de servir melhor a generalidade das pessoas e o planeta. No final, quem sabe, talvez o melhor de nós prevaleça, seja na conduta quotidiana, ou nas políticas encontradas.

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