“Se os clubes mais fortes não ajudarem, os mais fracos correm o risco de extinção”

Luís Campos é director técnico do Lille, quarto classificado da Liga francesa antes da interrupção dos campeonatos. Sem querer antecipar cenários tem, contudo, a certeza de que ninguém sairá desta crise sem ser afectado.

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Luís Campos DR

Luís Campos, director desportivo dos franceses do Lille, tido por alguns como uma espécie de Midas do scouting mundial, foi apanhado a meio de mais uma incursão pela América do Sul, que interrompeu de forma abrupta, ainda a tempo de conseguir regressar a casa, antes que a Europa se enclausurasse. Já em Portugal começou a reorganizar-se e a adaptar-se aos novos cenários impostos pela pandemia do novo coronavírus. Ao PÚBLICO, explica em que medida esta pandemia pode afectar o futebol a nível mundial tal como o conhecemos, antevendo que se não existir entreajuda entre os emblemas mais poderosos e os mais frágeis, muitos não conseguirão resistir.

No início do mês ainda assistiu à vitória do Lille, em Nantes, antes de mais uma investida à América do Sul… entretanto “boicotada” pela ameaça global da covid-19.

Depois do jogo com o Nantes, viajou para a Argentina. Com o campeonato a terminar, era a última oportunidade de ver alguns jogadores referenciados ao vivo. O plano era aproveitar esta viagem à América do Sul para ver jogos no Brasil, Equador e da Taça dos Libertadores.

“Ainda na Argentina apercebi-me das proporções que a epidemia começava a assumir, com os primeiros casos no país e as repercussões em toda a região. Ainda segui para o Brasil, onde assisti a dois jogos, mas rapidamente verifiquei que o problema estava a agravar-se e que precisava de alterar radicalmente os planos. Tinha mais dois jogos, no sábado e no domingo, mas na sexta-feira à noite estava a embarcar num voo de regresso a casa”, relata ao PÚBLICO Luís Campos, a viver fora de Portugal há 10 anos e que antes das actuais funções exerceu as mesmas no Mónaco​.

Mesmo para o centro do furacão.

Agora é tempo de recolhimento. Sem jogos, apesar de algumas (cada vez mais raras) excepções, que alternativas restam aos clubes, como o Lille, sem receitas para fazer face ao futuro imediato? Que papel cabe à prospecção nesta luta pela sobrevivência dos clubes com menores recursos financeiros como a esmagadora maioria dos emblemas portugueses?

“Vamos ter que reinventar-nos e acreditar que melhores tempos virão. Em França, estamos em regime de teletrabalho, ainda em fase de adaptação. A tentar encontrar o ponto de equilíbrio neste desacelerar. O clube está a ajustar-se e a desenvolver um trabalho assinalável para tentar errar o menos possível. É um esforço contínuo, que muda a cada dia, a cada hora, conforme a informação disponível. Nesta fase, é importante mantermo-nos activos em todos os aspectos: físicos, tácticos e mentais. Temos vídeo-conferências da equipa profissional para que todos possam estar no mesmo nível de informação. Do ponto de vista económico, temos que perceber os sacrifícios que a situação exige e o esforço necessário para nos mantermos ‘vivos’ face à nova realidade, de forma a podermos regressar saudáveis e aptos para enfrentar o futuro”, acrescentou Luís Campos. 

Entretanto, que rumo dar à prospecção? Qual a melhor táctica numa área em que a antecipação e estar um passo à frente da concorrência é cada vez mais essencial?

“Neste campo existem ferramentas poderosas, plataformas e programas que vamos desenvolvendo e que nos permitem seleccionar e acompanhar os melhores em todo o mundo. Não há jogos, mas temos vídeos. Podemos sempre rever metodologias, usar o banco de dados, as estatísticas e jogar com tudo. Normalmente, a nossa equipa reúne-se de dois em dois meses para discutir e definir estratégias. Aliás, tínhamos agendada para a próxima semana um encontro em Marrocos, precisamente para assinalar os 26 melhores jogadores detectados por nós no futebol africano. Mas como se compreende, tivemos que cancelar tudo… o que não nos impede de encontrar outras formas de trabalhar”, refere o director técnico do Lille.

Mais fracos correm risco de extinção

Com uma crise financeira sem precedentes à vista, já há cenários de cortes salariais e rescisões, nomeadamente em França, com os campeonatos em risco e as receitas a caírem a pique. Um cenário negro que leva Luís Campos a considerar que apenas com solidariedade entre todos será possível resistir.

“Somos a quinta maior indústria do mundo e vamos sofrer as consequências. Todos seremos afectados. Ao contrário do que estávamos habituados, não é já possível planificar com as mesmas certezas. Ninguém sabe o que vai acontecer. Só podemos especular. O futebol depende muito de receitas televisivas, como todos sabemos. Mas sem jogos, também os grandes grupos televisivos se ressentirão. Com as bilheteiras acontece o mesmo. Se os Jogos Olímpicos forem cancelados, isso significa que pelo menos até Setembro não fará sentido haver público nos estádios. Essa factura será elevadíssima. Os mais fracos dificilmente sobreviverão, enquanto os mais fortes, se quiserem manter um nível competitivo minimamente interessante, que lhes permita evoluir, terão que ser solidários e ajudar os menos bem estruturados”, sentencia Luís Campos.

Mas quer isto dizer que se poderá assistir a uma espécie de selecção natural nos clubes? Transferências cada vez mais “banalizadas” na casa dos cem milhões diminuirão? O que devem esperar países como Portugal e clubes vendedores, como o Lille? A estas questões Luís Campos responde com alguma prudência, embora admita que nada ficará como antes: “Neste momento, seria especulativo avançar com qualquer tipo de cenário. No futebol existe o fair-play financeiro, mas a conjuntura económica acaba por determinar o valor das transferências, que por norma acompanha o crescimento e investimento em determinadas áreas, como é o caso do futebol. É natural que agora se acentuem ainda mais as diferenças entre os mais poderosos e os clubes que procuram apenas manter-se à superfície.”

Luís Campos acrescenta ainda: “Numa entrevista recente, o presidente do Lille falava precisamente nessa dicotomia. Para aqueles que não têm grandes objectivos nem orçamentos, as receitas televisivas têm sido suficientes. Mas quando se pretende ir mais longe e dar luta a clubes que de uma forma quase autónoma se bastam a si mesmos, é preciso um esforço extra. Potenciar as vendas é uma dessas formas. Agora, não posso dizer que as transferências milionárias vão acabar, sob pena de ser desmentido pelos mercados. Posso é afirmar que os mais fortes terão que ser solidários e assumir um papel decisivo para evitar que os mais fracos desapareçam, fragilizando as próprias competições. Da mesma forma que vemos a sociedade unir-se para proteger os mais idosos e ameaçados. Portanto, neste momento, se tivesse que resumir e eleger o essencial ao combate que espera o futebol, diria que tudo dependerá da capacidade dos clubes realmente poderosos serem solidários, unirem-se e dar as mãos com os que correm o risco de extinção. Nenhuma equipa joga sozinha. Nesta luta pela sobrevivência, todos vão ter que ajudar. Essa é a grande mensagem.”

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