Tenho saudades da minha terra, tenho saudades do meu mar

Os meus estão quase todos em Ovar. E eu, que também sou de lá, não posso ir vê-los. Já pensámos encontrar-nos um dia destes na “fronteira”, só para nos vermos, mas depois lembrámo-nos que nos pedem para sairmos só em urgências. E por estes dias não é uma urgência vermos os nossos.

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Lara Jacinto

Para o que havíamos de estar guardados, diz a minha mãe, e eu digo-lhe, realmente.

Ela diz assim, mas também podia dizer, como já disseram os meus conterrâneos vareiros, o que nos havia de aparecer agora. Não sei se isto é regionalismo, mas por aqui dizem-se estas coisas. Tanto faz, cada um diga o que quer, a mim só me apetece dizer foda-se.

Estamos há uma semana em casa, eu, o Luís e a minha mãe, com saídas cirúrgicas para o básico. Eu já propus que afixássemos um papel na parede para irmos contando os dias de recolhimento, mas ainda não o fizemos, receio que sejam muitos.

Nós vivemos em Santa Maria da Feira, a minha mãe em Esmoriz, concelho de Ovar, que desde quarta-feira está sujeito a uma cerca sanitária. Trouxe-a para cá há exactamente uma semana, quando ainda não pensava que isto ia ser tão mau. Na terça-feira, já depois de sabermos que o concelho de Ovar ficaria isolado, fomos a casa dela. Trouxemos roupa e alguma comida em risco de se estragar mas não regámos as plantas.

Hoje voltámos. Sabia que teria que justificar a saída junto das várias patrulhas que controlam o acesso ao concelho de Ovar, mas decidi tentar a sorte. A minha mãe estava boquiaberta, acho que não imaginava ver o que viu: estradas fechadas com barreiras de cimento, policiamento na rua, a cidade às moscas. A vida agora acontece dentro de casa de cada um.

Para o que havíamos de estar guardados.

Realmente.

Mando daqui o meu agradecimento ao cabo da GNR que me abordou. Expliquei-lhe ao que ia, a minha mãe estava ao lado, precisava de ir ver o correio, buscar uns medicamentos que nos tinham escapado e regar as plantas. Pediu-nos que fôssemos rápidas e que regássemos bem as plantas, não sabe quando lá podemos voltar.

Regámos as plantas, esvaziámos o frigorífico e o congelador; fechámos o gás e a água e desligámos o quadro da luz. Trouxemos um vaso de coentros e um cacto. Batemos a porta atrás de nós, não sabemos até quando.

Tive vontade de ir à praia, ver o mar, faz-me falta, mas não fui, prometêramos ser rápidas. Também pensei que hoje tinha manicura marcada e afinal estava ali tão perto... Tenho quatro unhas escavacadas, mas o que é que isso interessa agora? As sobrancelhas também precisam de ajuda, mas não sou eu que me queixo que são finas de mais? Talvez agora possam crescer sem grandes preocupações. Felizmente tratei do cabelo quando ainda tínhamos vida, mas o Luís quer saber se pode ir cortar o dele. As minhas mãos estão queimadas de tanto as lavar e do álcool dos desinfectantes. Deixámos de ser bonitos ou feios, escondemo-nos atrás de máscaras e de luvas, vestimos a primeira coisa que aparece – ou ficamos de pijama o dia inteiro, mesmo que estejamos numa reunião com os colegas de teletrabalho.

E tornámo-nos pessoas desconfiadas. Esta manhã, bem cedo, fui ao supermercado. Cheguei dois minutos antes da abertura e havia três pessoas à minha frente. O segurança pediu ordem e calma, mas nestes dias de quase guerra essas são palavras vãs. Discute-se quem é o primeiro e quando a loja abre é difícil para toda a gente manter a distância de segurança. Pode parecer-nos que já estamos no fim do mundo, mas ainda não, tenha calma, senhor comprador.

O talho está praticamente vazio, há alguma carne embalada e pouco mais. Pego em duas embalagens de entrecosto e a senhora atrás de mim não disfarça o desalento. Percebo que são as últimas e estendo-lhe uma. Diz que não quer. Insisto, nós somos três mas qualquer coisa se há-de arranjar, e ela vira costas. Deve ter sido por eu já ter tocado na embalagem. Assim é o medo.

Para o que havíamos de estar guardados.

Realmente.

Saio do supermercado e olho para a cidade. Não há um café aberto. Apetece-me uma fogaça, mas nem isso: Petiz, Trovador, Museu, todos com cartazes colados à porta. Acho que em Ovar também não há pão-de-ló. Não têm bolos? Comam pão.

Se eu soubesse escrever livros, este seria o tempo perfeito. Como não sei, alinhavo para aqui umas palavras sentidas mas talvez com pouco nexo. Eu, que nunca fui bairrista, tenho saudades da minha terra. “Da” Maceda, como dizem os que não sabem que se diz de Maceda. Do meu irmão, dos meus sobrinhos, da minha cunhada, das minhas ricas primas, dos meus tios, dos meus amigos. Agora que penso nisso, os meus estão quase todos em Ovar. E eu, que também sou de lá, não posso ir vê-los. Já pensámos encontrar-nos um dia destes na “fronteira”, só para nos vermos, mas depois lembrámo-nos que nos pedem para sairmos só em urgências. E por estes dias não é uma urgência vermos os nossos.

Para o que havíamos de estar guardados, foda-se.

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