Descanso à força será solução?

Será legítimo a um empregador ordenar ao trabalhador que goze agora as férias que em condições normais iria gozar em período estival ou quando ele bem entendesse, para desse modo atenuar os efeitos da paragem forçada de actividade?

Vivemos tempos de excepção. Tempos em que, típico do ser humano, vem ao de cima o melhor e o pior de nós. Tempos em que ao mesmo tempo que se vêem vizinhos (que nunca ou raramente se tinham visto) trocar palavras amigas e cordiais, sabe-se de burlões a bater à porta das pessoas para vender pretensas vistorias técnicas “por causa da crise”. Tempos em que ao mesmo tempo que se vêem ser criadas redes de solidariedade para ajudar os mais fracos e necessitados, sabe-se de açambarcamentos de bens essenciais e não essenciais. São de facto tempos estranhos e de comportamentos extremos estes que vivemos.

Para um advogado de direito do trabalho são igualmente tempos de grande pressão em que se vê as empresas a não saberem o que fazer, o que priorizar, a que atender quando, próprio de uma situação de catástrofe, existem inúmeros assuntos e problemas para resolver.

Face a leis por vezes mal explicadas e feitas, aliás compreensivelmente, à pressa, de onde surgem dúvidas interpretativas que criam enorme ansiedade aos intérpretes e aplicadores, tenho defendido que, inevitavelmente, tem de prevalecer o bom senso como medida da sua justa aplicação. Eu sei que isto parece um lugar-comum. Mas não é. Como qualquer conceito indeterminado que está alinhado com o acervo moral e ético que rege a sociedade em que nos movemos, o bom senso é aceite por todos como um parâmetro válido de compreensão e decisão, mas o problema é passar da teoria à prática. Exceptuando casos de franjas patológicas, não há quem não concorde com ele em teoria, mas aplicá-lo à vida quotidiana sobretudo quando a mesma é pautada por circunstâncias de absoluta excepção e pressão é bem mais complicado.

No direito do trabalho existe tradicionalmente o antagonismo entre empregadores e trabalhadores, cada qual com interesses legítimos próprios e, em muitos casos, conflituantes. Caricaturando, ao empregador interessará pagar pouco e beneficiar do maior volume de trabalho possível, enquanto que o trabalhador quererá ganhar muito e trabalhar pouco. Mas, e porque vivemos numa sociedade que, para além dos efeitos ordenadores das normas legais, se pauta por valores não escritos essenciais como a responsabilidade, a boa-fé, a razoabilidade e o bom senso, nem os empregadores exploram os trabalhadores da forma referida, nem estes adoptam semelhante atitude (não ignoro milhares de situações em que assim não é, mas acredito estarem longe da maioria).

Tudo isto a propósito da questão das férias forçadas como meio de os empregadores combaterem a redução drástica, quando não o encerramento absoluto, das suas actividades. A questão que se coloca é simples: será legítimo a um empregador ordenar ao trabalhador que goze agora as férias que em condições normais iria gozar em período estival ou quando ele bem entendesse, para desse modo atenuar os efeitos da paragem forçada de actividade?

Antes de responder, e num quadro de análise mais amplo que não atende apenas nem aos interesses de um grupo nem aos interesses do outro, dir-se-á que é compreensível que os empregadores estejam desesperados por soluções que atenuem o mais possível o terrível impacto que a presente situação está a provocar. Nesse sentido, vale tudo desde que com um mínimo de legalidade, ainda que duvidosa, porque o fantasma do encerramento definitivo paira por perto. Por outro lado, é compreensível que o trabalhador encare uma ordem destas como ilegítima porque atenta contra a liberdade de conformação dos seus tempos de não trabalho, fazendo uma ingerência grosseira na organização da sua vida pessoal e familiar. Já quanto à lei, ela parece clara quanto a este ponto, estabelecendo regras para o gozo das férias, as quais dificilmente legitimam o gozo forçado em casos como o actual. Porém, não é a questão técnica que quero realçar, mas sim a não técnica que decorre da forma como empregadores e trabalhadores deverão olhar para uma situação de crise como a que estamos a viver.

Uns e outros não têm senão de aceitar que em momentos destes são inter-dependentes. Os empregadores precisarão da força de trabalho quando a actividade económica retomar e os trabalhadores precisarão que a empresa ainda esteja viva nessa altura. Por isso ambos os lados devem resolver a questão do período de tempo de inactividade com recurso sobretudo ao… bom senso. Não numa lógica quadrada e formal de direitos e obrigações que foi pensada para tempos de normalidade, mas sim de um ponto de vista de compreensão mútua e aceitação da profunda crise que se instalou e que constitui, de resto, uma situação de absoluta excepção.

Perante dúvidas de interpretação e aplicação do novo quadro legal, tenho, repito, defendido muitas vezes ao longo dos últimos dias que é de esperar que todas as partes – empregadores, trabalhadores e administração pública (designadamente a segurança social) – se relacionem com bom senso e compreensão mútua. A situação é, em alguns casos, tão extrema que se assim não for as probabilidades de serem criados danos irreversíveis (leia-se encerramentos definitivos ou despedimentos em massa) são enormes.

Quanto ao gozo forçado das férias, eu sou contra. Mas não sou contra a possibilidade de serem gozadas férias agora. Sou é contra elas serem forçadas. Porque são coisas distintas. Compreendo que esse gozo possa ter lugar, mas também compreendo que o trabalhador queira reservar algum tempo para melhores dias que, perto ou longe, acabarão por vir. Assim sendo, da mesma forma que é preciso responsabilidade nas decisões graves que se tomam em alturas destas, é necessário que todos se sintam parte da mesma realidade. Somos de facto inter-dependentes, goste-se ou não, queira-se ou não se queira. Não há volta. Tenhamos, pois, o bom senso de alcançar mais longe do que a ponta do nariz. Mesmo que ele seja comprido.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários