A insuportável demagogia

Tenho respeito por qualquer vírus, mais ainda pelas epidemias e uma pandemia coloca-me em sentido. Mas o pânico cansa-me. Exige uma disponibilidade física e mental que não tenho. Exige ler notícias especulativas, caixas ribombantes destinadas aos cliques gulosos e adequadas a fomentar irracionalidades.

Em Janeiro a China fechou portas dentro de casa, restringiu a mobilidade interna dos seus cidadãos mantendo a mobilidade desses mesmos cidadãos para outros países, nomeadamente Europa. Dessa restrição beneficiaram territórios chineses, atualmente apresentados como exemplo de contenção da doença. Mas manteve abertas as fronteiras externas não só para as viagens dos seus cidadãos como para receber os milhares que todos os dias se deslocavam à China por motivos de negócios ou outros.

Sobre a eventual ocultação de informações essenciais em Novembro e Dezembro e a atuação das autoridades chinesas não me pronuncio; além de politicamente incorreto, a realidade é que o mundo ocidental já necessita de materiais médicos e sanitários em quantidades que só a China pode prover e eventualmente necessitaremos de doação de ventiladores em Cabo Verde.

A Europa, depois de hesitações várias, começa a fechar fronteiras internas mas permite que os seus cidadãos embarquem em voos charters para férias em diversos destinos. Interessante quando se fecham discotecas mas se mantêm os voos internacionais! Apesar de centro da pandemia, a Europa permitiu nas últimas quatro semanas e ainda hoje que os seus cidadãos demandem outras paragens em férias. Com a insuportável demagogia de quem sempre fechou e controlou voos quando de febres hemorrágicas ou guerra.

Às hesitações dos governos, por motivos e interesses económicos que sabemos legítimos mas de cuja prioridade permito-me duvidar quando já se contam os body bags, somou-se uma mobilidade irresponsável por todos os lados, fundada aparentemente na prioridade máxima de não perder a semana de férias já pagas. Ou seja, numa situação epidémica parece que o cidadão europeu acha perfeitamente normal meter-se num cruzeiro ou dar um pulinho a Portugal, Marrocos ou a Cabo Verde.

Os interesses económicos falam mais alto. Risível o movimento #tomates dos chefs que não fecham o restaurante e exigem ao Governo português essa medida que, apesar das evidências e dos riscos, são incapazes de encerrar. Há cidadãos que esquecem que são parte da solução e do problema e aglomeram-se em bares e afins com a desculpa de que estão abertos, outros açambarcam máscaras e luvas esquecendo que se os demais não tiverem a oportunidade de se proteger o problema mantém-se.

Não são a maioria, porque é preciso reconhecer que há empresas que estão a reagir e cidadãos comprometidos e mobilizados na contenção dos contágios e mitigação da epidemia. Aliás, defendo que quando chegar a altura das compensações ansiadas por muitos se privilegie as pequenas empresas que foram capazes de atuar em tempo útil e se relegue para o fim da fila os tais chefs cheios de tomates.

O material e equipamento médico é escasso. Esta é a face de qualquer epidemia. O aumento de procura que leva ao ponto de rotura os meios existentes, incluindo os humanos. A capacidade dos Estados de adquirir está comprometida pelo facto de numa pandemia todos terem necessidade de responder ao aumento da demanda e criarem reservas para o tempo expectável da epidemia. Por maior que seja a vontade de um país de adquirir, sobrepõe-se a disponibilidade limitada, a que acresce que alguns países se comportam como pessoas em pânico. Ao mesmo tempo que apelam ao cidadão lembrando que não há rotura de cadeias de abastecimento, torna-se difícil aos países com menos disponibilidade económica terem acesso a máscaras ou a reagentes para testes. Louve-se o esforço da China em reforçar a produção de ventiladores…

A face real de qualquer epidemia em qualquer país, e aparentemente desconhecida pelo cidadão europeu, é a demanda superior à capacidade de oferta. Cabo Verde, por exemplo, é um país onde não existem muitas infeções respiratórias ao longo do ano, consequentemente o número de meios para respiração assistida destina-se às necessidades habituais e, na verdade, se calhar é mesmo deficitário para essas necessidades. Em caso de acréscimo exponencial de necessidades (e é esse o desafio que se coloca a todos os países) não haverá meios suficientes. Apesar dos dados serem ainda insuficientes, espalha-se a ideia de que África é imune por força da temperatura – ignorando que se trata de um continente em que as condições meteorológicas são completamente diferenciadas se estivermos a falar do Senegal ou da África do Sul – para manter os voos charter de turistas destinados a vários países.

Uma epidemia implica sempre a rotura da capacidade dos sistemas de saúde, déficit de recursos materiais e humanos para responder a um aumento exponencial de procura. A gestão dos recursos é fundamental e não se coaduna com a mentalidade dos que ficam escandalizados porque se lavam luvas. Mas saúde pública não é a minha especialidade, pelo que o que fica dito é apenas um desabafo.

Tenho respeito por qualquer vírus, mais ainda pelas epidemias e uma pandemia coloca-me em sentido. Mas o pânico cansa-me. Exige uma disponibilidade física e mental que não tenho. Exige ler notícias especulativas, caixas ribombantes destinadas aos cliques gulosos e adequadas a fomentar irracionalidades.

O pânico dá trabalho, demasiado trabalho. Mais fácil lavar as mãos e, à falta de lenço de papel, tossir e espirrar para o cotovelo. Cansa-me ver essas medidas de prevenção ridicularizadas pelos novéis especialistas em saúde pública que pipocam em todas as redes sociais. É como ridicularizar o uso de repelente para prevenir o paludismo ou do preservativo para as infeções sexualmente transmissíveis. Pedem-se prontuários de orientações mas nem com desenhos se compreende a importância da higiene e da distância social na mitigação dos contágios.

O pânico transforma-se em filas para comprar máscaras, em açambarcamento e fomenta a felicidade dos especuladores do costume. Muito trabalho! Mais fácil evitar os shoppings, verificar se ainda há sabão azul e vitamina C em casa e cumprir as recomendações quando por motivos de trabalho é preciso sair. Porque é preciso sair, não é possível deixar de produzir o essencial. Se o abastecimento de produtos e serviços básicos cessasse, a disrupção seria total.

O momento é importante. A consciência cívica, a responsabilidade individual são fatores fundamentais para que a resposta seja bem sucedida e a pandemia contida. O cidadão não é um objeto, é um sujeito de direitos e deveres e hoje o que se exige é que cumpra os deveres e autolimite os seus direitos. Impõe-se que tenha as precauções que as autoridades de saúde recomendam, impõe-se que tome os cuidados que o bom senso recomenda. Um isolamento preventivo não é um drama, particularmente em lares apetrechados com toda a parafernália digital: é uma ferramenta eficaz para interromper a cadeia de transmissão.

Lembrando um provérbio africano ubuntu, eu sou porque nós somos. A solidariedade e generosidade humana são fundamentais. Essa é uma lição positiva que o continente africano pode transmitir por força do enfrentamento das febres hemorrágicas, por exemplo.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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