Por cá somos todos destemidos, não éramos?

No início desta semana, no Reino Unido, ninguém cedia ao medo. Mas o Governo britânico que, destemido, andava a adiar tomar medidas drásticas, agora, pé ante pé e mais assustado, vai tomando algumas.

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LUSA/ROBERT PERRY

Escrevo-vos de Londres. Esta foi uma semana especial. Na segunda-feira, a minha filha foi para um passeio de escola, volta esta sexta-feira ao final da tarde. Durante cinco dias, os quintos anos de cinco escolas de Inglaterra andaram a fazer gincanas numa divertida colónia de férias. Nós, os pais, coitados – nervosos. Afinal de contas, a maior parte de nós nunca esteve tanto tempo sem ver os filhos, mas pudemos estar em casa descansados, pois sabíamos que eles estavam em boas mãos.

Descansados, esperávamos que eles se divertissem muito, que lavassem as mãos com frequência e mantivessem um metro e meio de distância entre si. Descansados, tivemos com os nervos em franja durante uma semana enquanto enviávamos mensagens entre nós a perguntar se tinha sido responsável tê-los deixado ir. Os miúdos andavam a sonhar com isto há dois anos, podíamos dizer que não? Achámos por unanimidade que a escola nos tinha deixado numa situação ingrata e que devia ter cancelado o evento. Mas, tal como nós, a escola esperou direcções superiores para cancelar fosse o que fosse e na segunda-feira as direcções não tinham chegado.

No início desta semana, no Reino Unido, ninguém cedia ao medo. As escolas ensinavam os miúdos a lavar as mãos enquanto cantam os parabéns. Os restaurantes estavam de portas abertas. As casas de espectáculo vendiam bailados e “Shakespeares”. Nos pubs bebiam-se as pints do costume. Nos clubs dançava-se. Nos transportes, à hora de ponta, ainda havia aquele amasso. Os supermercados estavam cheios, assistiam-se a pequenas novelas domésticas nos corredores, os empregados exaustos. Os meus amigos ponderavam ir à Tate, a festas de anos, ao concerto da namorada, ao cinema com o pai.

Éramos todos destemidos e destemidos perguntávamos: fazer o quê? Dizíamos que o resto do mundo estava a exagerar, a ceder ao pânico e a experimentar comportamentos ditatoriais. Levávamos a vida consideravelmente normal para, destemidos, criar imunidade de grupo. Miúdos de uniforme passeavam-se pelas ruas aos berros, aos magotes e aos abraços. Os hospitais estavam abertos para consultas externas e eu tinha uma consulta de endocrinologia confirmada para a próxima semana.

Mas isso foi na segunda-feira porque amanhã, no nosso primeiro dia de quarentena voluntária, vou explicar à minha filha — que andou a divertir-se durante cinco dias num potencial viveiro do novo coronavírus e que acha que o que mais temível se passou esta semana foi a descida de rapel — que Londres, tal como o resto do mundo, afinal também está virada do avesso. O Governo britânico que, destemido, andava a adiar tomar medidas drásticas, agora, pé ante pé e mais assustado, continua a tentar, mas vai tomando algumas — por tempo indeterminado, não haverá miúdos de uniforme a passearem-se pelas ruas; finalmente foi decretado que se fechassem as escolas.

Recebi entretanto uma mensagem a dizer que a minha consulta no hospital tinha sido cancelada. E se o Governo adia tomar mais medidas drásticas, tomamo-las nós: nas portas fechadas dos restaurantes e dos cafés lê-se “take-away only", as casas de espectáculo fecharam, os clubs também, os transportes circulam vazios, a Tate fechou pela primeira vez em 120 anos, já não se organizam festas de anos, já não há cinema para ir com o pai. Os supermercados continuam cheios mas já não se assiste a pequenas novelas domésticas, vai-se sozinho e tenta-se ser rápido, vai-se de máscara ou lenço à cowboy.

Não há ovos, arroz, massa nem farinha. Faz-se contrabando de papel higiénico. Os empregados estão ainda mais exaustos. Mas ainda se continua muito cool e muito brave e em alguns pubs, assustadoramente, há destemidos que bebem as mesmas pints. Uma amiga perguntou-me se a minha filha quer lá ir amanhã para brincar com o filho dela. Digo-lhe que não, que estou com saudades e quero passar o dia com ela – o que é que eu havia de responder?

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