Quarentena transforma campos de trabalhadores no Qatar em prisões

Muitos trabalhadores deixaram de receber salários, outros são forçados a ir trabalhar na construção de estádios do Mundial de Futebol de 2022, apesar do alerta de saúde por causa do coronavírus.

Catar
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O mercado Souq Waqif, em Doha, dias antes de se declarar a pandemia Reuters/IBRAHEEM AL OMARI
,Emirados Árabes Unidos
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O mesmo mercado, deserto, após a declaração de pandemia Reuters/IBRAHEEM AL OMARI

Os miseráveis e sobrelotados campos onde milhares de trabalhadores imigrantes vivem no Qatar tornaram-se virtuais prisões a céu aberto, diz o Guardian. As autoridades do Qatar ordenaram o encerramento de dezenas de campos depois de casos de covid-19 terem sido detectados entre trabalhadores imigrantes, que perfazem 95% da força de trabalho no país. Muitos deixaram de receber salário, estão proibidos de sair dos campos e receia-se que a pandemia se propague sem obstáculos, enquanto outros são forçados a ir trabalhar. 

“A situação está pior a cada dia que passa. Os trabalhadores do campo 1 ao campo 32 estão em quarentena. Os meus amigos estão em pânico extremo”, disse um trabalhador do Bangladesh ao Guardian. “Não somos autorizados a caminhar em grupo ou a comer em casas de chá. Mas ainda podemos comprar comida e levá-la para casa. Estou preocupado com a minha família. Não há ninguém para cuidar dela se algo me acontecer”, disse outro trabalhador, desta vez do Nepal, ao diário britânico. 

Mas nem todos deixaram de trabalhar. As autoridades do Qatar não querem que as construções de estádios e outras infra-estruturas para o Mundial de Futebol de 2022 se atrasem e muitos trabalhadores imigrantes, cujos testes deram negativo para covid-19, são forçados a laborar a terceira e quarta jornada de qualificação europeias foram entretanto adiadas pela UEFA. Apenas lhes medem a temperatura de vez em quando, uma medida de prevenção cuja eficácia tem sido contestada por autoridades de saúde de outros países, como é o caso das portuguesas – a febre pode ter outras causas para além do covid-19.

Muitos trabalhadores recusam-se a falar à comunicação social com receio de as suas identidades serem conhecidas e a deportação a consequência, por denunciarem as condições em que vivem, escreve o diário britânico. Os seus rendimentos são muitas vezes uma ajuda essencial para as famílias que deixaram nos seus países de origem e, agora, muitos estão sem receber. 

“O Governo nunca devia ter deixado os trabalhadores nestas terríveis condições e o mínimo que pode fazer é garantir que recebam os seus salários a tempo. Devem ter atenção às reduções e atrasos dos salários”, disse ao Guardian Vani Saraswathi, editora associada do Migrants Rights e que viveu 17 anos no Qatar. “Se os trabalhadores não puderem enviar dinheiro para casa, as suas famílias vão enfrentar verdadeiras dificuldades quando mais precisam do dinheiro”. 

As autoridades do Qatar identificaram até ao momento 460 infecções de covid-19 e dez já recuperaram - os seis Estados do Golfo já relataram mais de 1300 casos. “Até ao momento, a maioria dos casos de coronavírus no Qatar foram detectados na zona industrial”, que é onde os campos se localizam, disse à Reuters esta quinta-feira, em comunicado, o gabinete de comunicação do Governo. “Estão a ser feitos todos os esforços para evitar a propagação da doença no Qatar e proteger toda a população. E, em resultado, algumas áreas do Qatar foram isoladas para conter o vírus”. 

As autoridades já cancelaram grandes eventos desportivos, como o Mundial de MotoGP, encerraram locais públicos e cancelaram todos os voos internacionais para o país. 

Mas quem vive nos campos sente-se abandonado à sua sorte e, sabendo que os sobrelotados quartos onde dormem, muitas vezes com oito a dez pessoas, aumentam exponencialmente o risco de contágio, decidiram tomar as suas próprias acções preventivas. “Estamos a fazer tudo o que podemos para nos mantermos a salvo. O campo estava um bocado sujo, então limpámos tudo, mudámos os lençóis e usamos sprays para matar os micróbios”, disse outro trabalhador.

Os trabalhadores imigrantes perfazem 95% da força de trabalho no Qatar, diz a Amnistia Internacional num relatório de Julho de 2019, e nos últimos anos, depois de o Campeonato do Mundo de Futebol ser atribuído ao país, o número aumentou enormemente. Em Dezembro de 2010, eram cerca de 1,6 milhões a trabalhar no Qatar e, em Outubro de 2018, já eram mais de 2,7 milhões, a maioria vindos de países pobres da Ásia. A maior parte vem da Índia, Nepal e Bangladesh, diz a Bloomberg. 

Quiseram aproveitar as novas oportunidades económicas com o investimento massivo em infra-estruturas para o mundial, mas muitos acabaram por ser vítimas de um sistema de trabalho extremamente explorador, diz a Amnistia Internacional. “O abuso e a exploração de trabalhadores imigrantes com baixos salários, às vezes equivalendo a trabalho forçado e a tráfico de pessoas, têm sido extensivamente documentos desde que o Mundial de Futebol foi atribuído ao Qatar”, denuncia a organização de direitos humanos. 

Pelo menos 34 trabalhadores já morreram na construção de estádios e outras infra-estruturas para o evento mundial, diz a Bloomberg, levantando um coro de críticas sobre a falta de segurança e condições laborais no Qatar. As autoridades do país levaram entretanto a cabo reformas alargadas sobre as condições de trabalho, escreve a Reuters. 

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