Um vírus entre o abismo e a esperança

Talvez comecemos a dar valor ao essencial e saiamos a horas do trabalho para estarmos com os nossos. Que possamos pousar mais vezes o telefone para nos abraçarmos sem reservas e receios ou a estarmos mais atentos a nós e aos outros.

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wen chen/Unsplash

Estamos todos a perder, sem excepções, sem certezas, sem mais nem menos.

Se alguma vez nos contassem que iríamos todos ver a Primavera nascer através da janela, acreditavam? Que estaríamos fechados nos dias que começam a crescer, que a varanda seria a muralha que nos intervala entre a vida e uma guerra que não sabemos como começou e quando termina. Que desconhecemos quem possui as armas, quem as usa ou quem as passeia. Que nos fosse vedado o acesso a sermos quem somos, aos nossos hábitos e ao mundo.

Que estaríamos todos assim, receosos, alarmados e que o medo fosse a nossa maior ponte e nos levaria os dias por tempo incerto: sem amigos, jantares de família, dias do Pai ou da Mãe, dias de nada ou de tudo, cervejas ao fim da tarde, exposições, jogos da bola, um abraço aos avós, cinemas, concertos, serões intermináveis; mas, sobretudo, abraços e amor que se toca, sem apertos de mão, dois beijos e cafuné. Sem amor que se entrega e se aperta. Os beijos imaginários não são suficientes, por muito que a nossa capacidade de recriar esteja a ter momentos de fulgor.

A vida fez uma pausa e deixou-nos confinados aos nossos metros quadrados a crédito ou a pronto.

O mundo pregou-nos um susto sem rosto, sem identidade, sem morada e próximo de todos. Não acontece aos outros, acontece a todos; a nós, aos nossos filhos, pais e irmãos, aos de quem gostamos e aos que odiamos, aos que queremos e aos que nos são indiferentes, aos que admiramos e aos que não nos são nada.

Pela primeira vez somos todos parte do mesmo, uma guerra sem classes sociais, partidos, estatutos, ideais ou nomes e só com uma arma. Capaz de nos atingir a todos, sem horário ou aviso, em segundos, desprevenidos e só porque estamos a viver.

E é por isso que temos que mudar os hábitos e as rotinas entre nós e entre todos, fazermos da nossa casa um porto de abrigo que nos manterá seguros até que, num dia qualquer, possamos voltar a viver como fazíamos, ou pelo menos parecido. Sermos responsáveis e conscientes por nós e pelos outros, pela nossa família, pelos vizinhos e mesmo por quem não conhecemos de lado algum. Prevenindo, assim, os dias em que a tempestade trará ondas maiores e antecipando abraços e tempos melhores, dias de escola, de trabalho ou de amena cavaqueira. Sem culpar ninguém, com a responsabilidade de cuidarmos uns dos outros.

Que cada casa seja a nossa fortificação, as janelas escudos e os acenos, bandeiras em riste. E é por isso que me comovo e me ergo dos momentos em que me sinto a derrubar, por cada gesto que nos traga união, que nos leve no mesmo caminho, porque cada manifestação entre todos é um sinal de esperança nestes dias perdidos de certezas e felicidade, porque vi nos meus vizinhos ou nos estranhos do prédio da frente traços de felicidade que haviam sido escondidos por máscaras brancas. Senti força e paz nas palmas que se esqueceram por momentos das luvas descartáveis, porque há sorrisos que não se reciclam e nos confortam, que amenizam os dias difíceis ou as tardes passadas entre vídeo chamadas, zapping e um mundo estranho.

Porque as palmas não custam, não se pagam e nem precisam de imposto. E se o fizermos todos os dias à mesma hora? Mas por todos? Por nós? Por cada um que nunca vimos, mas que nunca foi tão igual a nós? Não trará mal algum; comigo resultam e posso garantir o mesmo efeito nos estranhos que passei a conhecer. Porque são o melhor contágio nestes dias em que fugimos dele. O contágio de amor e solidariedade.

O mundo daqui para a frente não voltará a ser o mesmo e nós também não, nem que seja por termos aberto a consciência de que nos podemos separar inesperadamente de quem amamos e por mais efémeras que possam ser as nossas memórias, não ficarão arredadas dos dias que nos levaram a possibilidade de vivermos tranquilos com vista para as estrelas; ou por termos descoberto que, se calhar, tínhamos tanta coisa à mão e só precisamos de saúde e da família segura. Talvez comecemos a dar valor ao essencial e saiamos a horas do trabalho para estarmos com os nossos. Que possamos pousar mais vezes o telefone para nos abraçarmos sem reservas e receios ou a estarmos mais atentos a nós e aos outros.

Que não foi só o planeta que ficou mais limpo, nós também.

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