Capítulo um: a República do WhatsApp

Governado por meio das redes sociais, o Brasil começa a apresentar sintomas de realidade.

O Brasil é o segundo país de maior consumo de redes sociais. De acordo com a pesquisa da inglesa GlobalWebIndex, a média brasileira é de 225 minutos diários com os olhos conectados a rede social. A pesquisa, claro, não analisou o tempo que líderes governamentais passam na internet. No entanto, se houvesse uma classificação, suponho que o presidente do Brasil e sua equipe disputariam a liderança do ranking

Jair Bolsonaro chegou ao poder investindo na comunicação por meio das redes sociais e WhatsApp. Desmoralizou a imprensa tradicional e criou um canal de comunicação próprio. Se no jornalismo devemos sempre preencher as seis perguntas para dar uma notícia (o quê, onde, quando, como, quem e por quê), Bolsonaro seguiu outro protocolo.

Qualquer informação precisa apenas de dois elementos: uma montagem chamativa e um título cativante. Resumindo, ‘meme’ - um conceito de imagem ou vídeo que se espalha de maneira viral na internet - virou jornalismo nas mãos dele. A era das fake news e da pós-verdade senta na cadeira presidencial.

O tamanho real desta rede de disseminação de notícias falsas ainda não é totalmente conhecido. Uma Comissão Parlamentar de Inquérito foi aberta na Câmara de Deputados para tentar desvendar esse mistério, mas ainda não apontou nenhuma conclusão. Porém, até o momento, a maior descoberta conecta diretamente políticos à conta de ataques virtuais. Segundo um relatório entregue pelo Facebook, um dos principais perfis de fake news foi criado de um computador de dentro da Câmara dos Deputados e o e-mail vinculado à página é de Eduardo Guimarães, secretário do deputado Eduardo Bolsonaro, o filho do presidente.

Com a conquista do poder pelo clã Bolsonaro, no entanto, a rede de notícias falsas perdeu protagonismo para os próprios perfis oficiais do presidente e do governo brasileiro. Por lá, Bolsonaro e ministros dão informações sem fontes e realizam ataques pessoais. É o caso de quando uma jornalista descobriu que Hans River, ex-funcionário de uma empresa de disparo de mensagens em massa, mentiu ao testemunhar no inquérito que investiga a proliferação de fake news.

Por meio de conversas falsas de WhatsApp, a jornalista Patrícia Campos Mello foi acusada de oferecer relações sexuais para Hans River entregar o esquema criminoso. O fato obrigou a jornalista a apresentar as conversas na íntegra e comprovar que manteve apenas uma relação habitual entre jornalista e fonte. Inclusive, demonstrou esquivar-se de alguns convites de Hans River. Actualmente, Patrícia Campos Mello processa Jair Bolsonaro por danos morais de cunho sexual. Em entrevista à imprensa, o presidente afirmou, utilizando-se de duplo sentido, que a jornalista queria “dar o furo”.

Outros personagens que constantemente sofrem com os ataques são os presidentes do Legislativo e do Judiciário. Jair Bolsonaro, apesar de ter passado 27 anos da vida como deputado, hoje acusa os antigos companheiros de compor uma casa que trabalha em benefício próprio. Da mesma maneira, coloca em dúvida a imparcialidade dos juízes do Supremo Tribunal Federal. No Twitter, chegou a publicar um vídeo onde um leão assusta hienas. Na montagem, claro, o predador é o Bolsonaro. A presa são os juízes. 

Todavia, o ataque mais forte aconteceu no fim do mês de fevereiro. Um vídeo compartilhado pelo próprio Bolsonaro para pessoas próximas convocou manifestações para o último dia 15. O ato era diretamente organizado contra os membros do Congresso Nacional e o Judiciário. Ao ser questionado, Bolsonaro disse que a imprensa estava inventando notícias e que o vídeo era de 2015, mas caiu em contradição por dois motivos.

Primeiro porque uma jornalista descobriu um grupo de WhatsApp composto por empresários e líderes do governo que combinavam apoio a manifestação. Segundo e mais evidente, o vídeo apresenta a imagem do ataque à faca sofrido pelo presidente em 2018. Bolsonaro nunca explicou como um vídeo de 2015 apresentaria uma imagem de três anos depois.

O presidente, que inicialmente negou envolvimento com a manifestação, passou a chamá-la de ato popular. Já os políticos-alvo do protesto preferiram a discrição, uma vez que qualquer resposta mais contundente poderia inflamar ainda mais a parcela da população que acredita que o presidente deve comandar as outras esferas governamentais. Assim, Bolsonaro conseguiu colocar o legislativo e judiciário contra uma parede invisível.

A manifestação do dia 15 não foi muito relevante. Acostumada a receber milhões de pessoas, a Avenida Paulista, na cidade de São Paulo, teve apenas um quarteirão aglomerado por Bolsonaristas. No protesto, sobrou até para o Coronavírus, que foi acusado de ser uma mentira e ganhou o apelido de “Comunavírus” – uma junção de palavras que dá a atender que a doença é uma invenção comunista.

Jair Bolsonaro, ao contrariar o próprio Ministério da Saúde, juntou-se a um dos eventos da manifestação. Enquanto o Governo pedia para a população ficar em casa por motivos de segurança sanitária, o presidente resolveu agir por conta própria. Em nenhum momento levou em consideração que, dos quase 300 casos de coronavírus no país, pelo menos 18 são do círculo de convivência presidencial. Levando em consideração os dados de 18 de março, quase 7% dos infectados do país estavam na comitiva brasileira que se reuniu com o presidente Donald Trump no começo do mês de março.

Não existe sequer a certeza de que Bolsonaro não está com Covid-19. Por WhatsApp - novamente ele –, Eduardo Bolsonaro chegou a confirmar para a emissora americana FOX News que o pai tinha testado positivo para o vírus. A notícia foi dada como breaking news e desmentida pelo próprio Eduardo minutos depois. A imprensa americana caiu em um truque que jornalistas brasileiros já estão acostumados: deixar-se levar por informações de dentro do governo para, logo depois, ser acusada de praticar fake news.

Aliás, testando positivo para fantasia, muitos membros do Governo ainda colocam o coronavírus como algo que não existe. Ou que, pelo menos, tem solução medicinal simples. “A melhor vacina contra o coronavírus é avançarmos com a agenda de reformas”, disse o secretário de Política Económica, mostrando que deveria, realmente, apenas atuar no campo em que lhe diz respeito.

Após as manifestações do dia 15, a participação de Jair Bolsonaro no ato não foi bem vista. Com o crescente medo pela contaminação do vírus, parcela da população que o apoiava passou a criticá-lo. Nesta terça-feira, o descontentamento começou a apresentar sintomas. Barulho de panelas, em forma de protesto, ecoou pelas janelas dos prédios de São Paulo. Jair Bolsonaro, que incentivava os ‘panelaços’ contra a presidente Dilma Rousseff em 2016, agora prova do próprio veneno.

Na semana seguinte após afirmar, mesmo sem provas, que a eleição que o elegeu foi fraudada pela esquerda, Jair Bolsonaro recebeu a notícia de um novo pedido de impeachment contra ele. O documento cita crime de responsabilidade ao afirmar que o presidente agiu contra a Constituição ao convocar as manifestações populares, ao insultar sexualmente a repórter Patrícia Campos Mello e ao acusar que as eleições brasileiras foram uma fraude.

Ainda é muito distante pensar em um cenário no qual Bolsonaro estará longe do poder. No entanto, a crise de imagem do presidente atinge uma velocidade de contágio parecida com a do vírus que, até alguns dias atrás, ele mesmo fingia não existir.

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