Coronavírus no Reino Unido

A epidemia vem somar-se a um mal-estar pós-”Brexit” que o governo britânico tem vindo a ignorar. Fica o sabor amargo de um modelo económico que resiste mal a imprevistos e serve cada vez com maior dificuldade a maioria da população.

O Serviço Nacional de Saúde britânico está relativamente paralisado pelo coronavírus (ou covid-19). Todas as operações não urgentes foram adiadas para libertar camas nos hospitais. Os centros de saúde de bairro, que funcionam como primeiro nível de triagem, deixaram de examinar os doentes; as consultas são feitas por telefone, incluindo a prescrição de antibióticos. Os testes de coronavírus estão limitados aos doentes hospitalares; esta política contrasta com a da Coreia do Sul, que tem feito 20.000 testes diários com o apoio de uma rede de laboratórios que funcionam 24 horas por dia.

O número de casos tem vindo a aumentar exponencialmente, embora ainda se esteja longe do pico: o Reino Unido tem um atraso de três semanas na difusão do vírus em relação a outros países europeus. Em todo o caso, podemos já detetar diferentes padrões de impacto e políticas.

A taxa de mortalidade face ao número de casos comprovados de coronavírus varia entre 8% em Itália e 0,3% na Alemanha. O Reino Unido está no meio do leque com 3,6% de mortos, abaixo da Espanha (4,5%) e acima da França (2,3%), dos Estados Unidos (1,8%) ou da Coreia do Sul (1%). Ainda é cedo para avaliar bem estes valores, dado que o número de casos irá aumentar tanto no Reino Unido como nos Estados Unidos nas próximas semanas.

As políticas são divergentes. Nesta segunda-feira, os discursos do primeiro-ministro britânico Boris Johnson e do Presidente francês Macron não podiam ter sido mais opostos. No caso francês, uma intervenção decisiva no seguimento do fecho de fronteiras, escolas e lugares públicos com penalizações, acompanhada por uma garantia de apoio financeiro generalizado a empresas e a assalariados insolventes. No caso britânico, o aconselhamento de isolamento sem quaisquer medidas efetivas, embora se tenha disponibilizado um pacote financeiro significativo para apoio a empresas em dificuldades. O Reino Unido não decidiu fechar uma única escola ou lugar público; as escolas vão começar a fechar dado o aumento do pessoal doente.

A lógica de combate ao vírus é também divergente: enquanto a União Europeia decidiu fechar fronteiras e circulação de pessoas para conter o vírus, o Reino Unido absteve-se de enveredar por esse caminho. O modelo inicial, caucionado pelos chefes médico e cientista junto do governo, era de facilitar a difusão do vírus para garantir a “imunidade da manada” (sic). A lógica era explícita: o vírus poderia reaparecer mais tarde e seria necessário obter imunidade com a infeção de pelo menos 60% da população, ou seja, 40,7 milhões de infetados numa população de 67,8 milhões. Mesmo que a atual taxa de mortalidade fique reduzida de 3,6% para 2,5%, o que é duvidoso, isso significaria a morte de mais de um milhão de pessoas.

Cerca de 300 cientistas escreveram uma carta de protesto, sublinhando que o comportamento do vírus não é conhecido, nomeadamente a sua recorrência e possíveis formas de transmissão depois da cura. O conservador Jeremy Hunt, anterior secretário de Estado da Saúde e atual presidente da comissão parlamentar da saúde, teve a coragem de criticar a estratégia do governo. Vale a pena refletir sobre os exemplos de outros países. Na China, onde o surto epidémico começou, este parece estar relativamente debelado ao fim de quatro meses, à custa de medidas drásticas de isolamento das populações afetadas.

O governo britânico parece ter recuado em palavras, mas não em atos. Existe já um protesto surdo, mas que se começa a ouvir. Uma amiga doutorada em epidemiologia com responsabilidade no respetivo serviço de um dos principais hospitais britânicos disse-me que a lógica de evitar medidas radicais é errada e conduzirá a um número desnecessário de fatalidades. Os hospitais, enfraquecidos por anos de declínio orçamental, perda de pessoal e redução de serviços, nomeadamente em epidemiologia, com falta de camas de cuidados intensivos, ventiladores e máquinas de purificação de sangue, vão ficar sobrecarregados mais cedo. Para esta amiga epidemiologista, o governo pretende apenas poupar dinheiro.

O cenário parece evidente: redução do Produto Nacional Bruto como inevitável consequência do vírus, queda dos impostos, aumento significativo da dívida pública, reversão da taxa de desemprego, incapacidade de estimular a economia no ano de negociação da futura relação com a União Europeia. Percebe-se a tentativa do governo britânico de adiar intervenções efetivas com custos económicos, mas neste caso o que está em questão é um problema grave de saúde pública. Até o governo dos Estados Unidos decidiu agora pagar cheques diretamente aos assalariados atingidos pela crise, medida que há uns anos era rotulada pela direita como uma fantasia da esquerda.

A resposta financeira da União Europeia à epidemia tem sido considerada fraca, embora a resposta de diversos governos, como o francês, possa ser considerada musculada. É evidente que estes governos arriscam o aumento exponencial da dívida pública, mas assumem que o Estado existe para proteger a população em caso de emergência. São diferentes lógicas de perceção da função do Estado que estão aqui em jogo. É ainda cedo para saber quem tem razão; a curva de difusão e desaparecimento do vírus pode evitar consequências fatais para a economia mundial, que se encontra já em recessão, mas é duvidoso que esse desaparecimento ocorra espontaneamente.

O problema é que a epidemia vem somar-se a um mal-estar pós-"Brexit” que o governo britânico tem vindo a ignorar. A greve de três semanas nas universidades (estamos na última semana) pelo aumento de contribuições da entidade patronal para as pensões de reforma e por melhores condições de trabalho é um sinal. O governo britânico não está diretamente envolvido, pois, nos anos de 1950, alijou responsabilidades na política de pensões, transferida para as empresas e os empregados. Mas noutros setores, situações equivalentes irão conduzir a ações semelhantes com impacto económico.

A sociedade civil britânica irá colmatar, em parte, a incapacidade do governo. Vejo indícios de solidariedade nas ruas e nas redes da internet. A mudança de paradigma nas relações entre as pessoas, com menor exposição pública e maior interação em família e em círculos de amigos, é um fenómeno interessante, mas temporário. A mudança de hábitos só será contínua no caso de perda do poder de compra. Caso contrario, a espiral de consumo, viagem e lazer irá recuperar com gosto logo que o vírus esteja domesticado.

Fica, contudo, o sabor amargo de um modelo económico que resiste mal a imprevistos e serve cada vez com maior dificuldade a maioria da população. Estariamos em muito melhores condições de enfrentar este tipo de desafios se o investimento na indústria de guerra fosse substituido pelo investimento na saúde. Mas para isso seria necessária uma revolução mental. Nos Estados Unidos, uma das reações mais surpreendentes ao vírus tem sido o aumento significativo da venda de armamento. A esperança não está ali.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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