Pandemias, instituições e “open source

A noite é sempre mais escura antes de o sol nascer e a noite que se abateu sobre nós ainda vai ficar mais escura. Mas este é o momento de confiar nos Portugueses, sermos exigentes com as instituições e proteger quem está na linha da frente.

New York City, 16 de Março de 2020,

Estou neste momento no avião de regresso a Portugal, depois de quase três anos a viver nos Estados Unidos e a meio de um doutoramento.

Durante quatros anos, já depois de ter terminado medicina, fui treinado para gerir epidemias. Já estive envolvido no controlo de surtos de tuberculose, casos suspeitos de sarampo, treino em caso de importação de ébola, e até sarna (escabiose). Mas, desta vez, o esforço que é pedido aos profissionais e aos Portugueses é diferente.

Estive a trabalhar em Bruxelas na segunda metade de 2014; na altura, o mundo combatia uma epidemia de ébola costa oeste africana. Na reunião semanal no Centro de Coordenação de Emergências da Comissão Europeia vi de perto as diversas fases de uma epidemia. A complacência da opinião pública, a consciencialização do problema, as disfunções nas cadeias de fornecimento de equipamentos, a falta de recursos para a mitigação, o voluntarismo descoordenado da sociedade civil, até ao excesso de recursos na fase de resolução da epidemia. Portugal tem obviamente mais recursos e capital humano para conseguir coordenar uma melhor resposta, mantendo as cadeias essenciais a funcionar.

O professor de Saúde Pública da Universidade de Chicago Carl Bell refere que há três aspectos fundamentais no combate a uma epidemia: evidência cientifica sobre o que funciona e o que não funciona, capacidade de implementação e vontade política. Se algum destes três pilares faltar será mais difícil ter sucesso e minimizar o impacto na saúde da pandemia de covid-19. Eu acrescentaria um quarto pilar, a transparência.

Este foi a primeira epidemia num mundo do conhecimento verdadeiramente digital. Plataformas como o GitHub disponibilizaram mais informação e conhecimento de forma aberta em apenas dois meses do que anos de investigação durante e após a pandemia de H1N1 em 2009. É este o standard que devemos exigir às instituições públicas e Governo: informação aberta, organizada, disponibilização dos modelos de progressão da epidemia e de procura do sistema de saúde usados, para que possam ser escrutinados e, acima de tudo, melhorados. É em momentos de crise que é mais importante aguentar as críticas construtivas, manter ou afinar a estratégia. Nos próximos meses, temos de ter capacidade de monitorizar ao dia e de forma pública, com dados abertos, o impacto da covid-19 no nosso sistema de saúde, e na saúde da população (bons exemplos aqui, e aqui).

Outro aspecto importante é cuidar bem das nossas instituições; “em tempo de guerra não se limpam armas” mas algumas das nossas armas, quando as quisemos usar, tinham pó. Não sabíamos quem eram os membros da Comissão Nacional de Saúde Pública (CNSP), que está prevista na Lei desde 2009. Tivemos dificuldade em escrutinar o seu trabalho porque não sabemos exatamente em que estudos se basearam, uma vez que a fundamentação do parecer não é pública. Há boas razões para discordar do parecer do CNSP aqui. As minhas críticas são ao processo e não ao órgão em si, que considero ter imensa utilidade, desde que haja transparência, que os seus membros se reúnam para além das situações de emergência e desenvolvam redes de conhecimento com a academia em períodos de normalidade.

Agora é também a altura de colocar uma equipa a pensar como sairá o nosso sistema de saúde e a economia da pandemia, quanto tempo levaremos a recuperar toda a atividade não realizada, que modelos de organização devem ser repensados. O governo Inglês, em 1940, em plena guerra mundial, encomendou ao economista William Beveridge um relatório de preparação que viria a servir de base à criação do SNS Inglês. Agora é o momento de pensar o pós-pandemia.

A noite é sempre mais escura antes de o sol nascer e a noite que se abateu sobre nós ainda vai ficar mais escura. Mas este é o momento de confiar nos Portugueses, sermos exigentes com as instituições e proteger quem está na linha da frente.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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