O desejo nos tempos de covid-19

E o que fazer com o desejo nestes tempos? Penso que, se a pandemia durar o bastante, talvez possa tornar-se uma questão de saúde mental, além de um caso de saúde pública. Não nos tocarmos tem consequências a longo prazo, é sabido.

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Ainda não me tocou. Pressinto que me deseja e que não se atreverá a tocar-me nos próximos tempos. Tem medo. Eu também. O sentimento é generalizado, estamos todos com receio de que a peçonha forte e invisível se instale em toda a parte. Os media não param de nos matraquear, minuto a minuto, e o excesso de informação (incluindo alguns mitos estapafúrdios) não ajudam a acalmar a paranóia iminente. Dizem-nos para não termos medo e para mantermos a calma. E nós tentamos obedecer, embora sejam forças raramente compatíveis — o medo e a calma.

E o que fazer com o desejo nestes tempos? Penso que, se a pandemia durar o bastante, talvez possa tornar-se uma questão de saúde mental, além de um caso de saúde pública. Não nos tocarmos tem consequências a longo prazo, é sabido. Ocorre-me como é frágil a nossa condição, como sempre nos julgámos invencíveis, imortais até, e acreditámos numa sociedade civilizada, sem possibilidade de dar erro. Ocorre-me também o Ensaio Sobre a Cegueira, de Saramago, e como a humanidade ficou caótica em tão pouco tempo. Basta uma falha no sistema, supostamente tão organizado, para que se instale o caos. Somos frágeis.

Olha para mim enquanto fala e eu não o oiço. Estou demasiado concentrada nos movimentos dos lábios rosáceos e carnudos ­— desejo e medo. Vontade de beijar e ficar no plano da fantasia, sabendo que até no diálogo poderá calhar um perdigoto infectado. Este pensamento dá cabo do desejo. Estamos a mais de um metro e meio de distância. Vejo-lhe as mãos que pressinto quererem tocar-me. Pequenas e finas, com as unhas redondas e limpas, mãos que gesticulam com tremor, saídas dos punhos de algodão preto. Parecem de pedra, pelo contraste entre tecido escuro e a tez pálida.

Não nos podemos tocar. O contacto físico encontra-se reservado a uma cadeia mínima de familiares que viva na mesma casa. É desaconselhado o contacto com qualquer outra pessoa. O desejo por cumprir torna-se uma acção perigosa. Uma ameaça de terrorismo sanitário. Olhamo-nos. Sabemos o que temos feito às escondidas. Virtualmente e em privado. Sinto o rosto ruborizar. Não sabia que ainda ruborizava. Em duas horas é a segunda vez que acontece, talvez seja do vinho. Olha-me e ruborizo, pareço uma adolescente. Tento disfarçar, mas torna-se impossível. Terminamos de beber o último copo de vinho no bar onde somos os únicos clientes. Só por ali anda um empregado estrangeiro, com um ar enfadado, a arrumar garrafas de bebidas alcoólicas nas prateleiras atrás do balcão.

Não há música, talvez os clientes não sejam bem-vindos. Talvez o desejo não seja bem-vindo nestes tempos. É tarde e, embora deserta, a noite com as ruas vazias mete ainda mais medo. O desejo cumprido, deixá-lo para mais tarde. Quando puder ser. A espera incendeia a vontade. Desde que não seja por demasiado tempo, desde que se cumpra.

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