A humanidade e o vírus

Ao contrário de outras espécies, os humanos são seres altamente gregários que, desde a sua génese, conseguiram sobreviver e dominar outras espécies mais robustas através da especial capacidade de criar vastas redes de cooperação e partilha de informação e bens. Assim nasceram grandes comunidades e assim foram plantadas as primeiras sementes da globalização.  

Contudo, a exponencial interação entre humanos de vários cantos do mundo contribuiu também para o sucesso de uma estranha forma de vida a que chamamos de vírus. Estes agentes infecciosos altamente replicáveis, que representam a maior diversidade biológica do planeta, têm colocado em causa o ser humano enquanto ocupante do lugar cimeiro da cadeia alimentar. 

Na verdade, as grandes crises epidémicas têm sido um dos grandes fatores transformadores das diferentes sociedades humanas nas suas várias dimensões. Depois de epidemias incontroláveis, nasceram novas sociedades ou, pelo menos, diferentes. A varíola, aliada dos exércitos europeus invasores, dizimou os povos indígenas (e o seu património cultural), fazendo surgir novas comunidades que mais tarde originaram os modernos estados da América do Sul.

Foi após a erupção mais letal da peste bubónica (que ceifou cerca de um terço, ou mais, da população europeia no século XIV e destruiu a economia do continente), que surgiu o Renascimento. Mais recentemente, também o HIV mudou o mundo: nalguns países do sul e leste de África o vírus continua a matar em grande escala; nos países desenvolvidos ganhou o estatuto de doença crónica e tratável, transformando inclusive o diálogo das maiorias com as minorias LGBT. 

A atual crise pandémica do coronavírus (covid-19), à semelhança de outras epidemias, já está a ter e terá um impacto mais ou menos severo em termos sociais, económicos e políticos, consoante a sua duração. Para além das consequências ao nível da saúde, o vírus do medo e da incerteza tende a amplificar as desigualdades sociais já existentes, decorrentes do congelamento da atividade económica. A combinação de uma crise de saúde pública com instabilidade social e recessão económica terá também óbvias consequências políticas.  

Num ano que começa a ser muito marcado pelas eleições presidenciais norte-americanas, a crise dos refugiados e tensões internacionais assiste-se a um travão na globalização – sinónimo de prosperidade, mas também de contágio. A desconfiança do exterior propaga-se pelos países, obrigando ao encerramento de fronteiras de modo a impedir a importação de estrangeiros infetados. Todavia existem efeitos adversos, nomeadamente as restrições à livre circulação de bens e serviços; os mais pobres e mais dependentes do exterior serão os primeiros a sofrer. 

O coronavírus servirá também para jogos de política interna. As lideranças, independentemente da sua cor política e das medidas tomadas para anular o vírus, serão postas em causa, nomeadamente no desastroso caso italiano e no caso iraniano (que já carrega às suas costas a recente crise com o EUA). O próprio Xi Jinping tem sido alvo de críticas internas, sendo complexo descortinar o seu futuro político, considerando o inexistente debate político público chinês.  Nas eleições norte-americanas, o coronavírus será mais uma das armas de arremesso a usar numa campanha que se espera turbulenta e onde o vírus do medo será usado para a conquista de eleitorado. 

O futuro está em suspenso com várias incertezas no horizonte. Como se comportará o vírus no verão do hemisfério norte e no inverno do hemisfério sul? Quando chegará uma vacina? Estarão disponíveis antivirais até à chegada de uma vacina? Até que ponto a economia irá aguentar este embate? Em resumo: quando é que este pesadelo terminará, para voltarmos a ser donos e senhores do planeta? 

A investigação científica e os cuidados médicos evoluíram vertiginosamente nas últimas décadas. Há cem anos atrás, aquando da gripe espanhola que se estima ter morto entre 50 a 100 milhões de pessoas, não existiam antibióticos, antivirais, hospitais modernos ou médicos especialistas. O contexto era muito diferente, mas os efeitos do vírus do medo são exatamente os mesmos pelo simples facto da natureza humana não ter mudado; é assustador passar de caçador a presa. 

A ciência e tecnologia deram uma confiança (e uma arrogância) inabalável no domínio humano sobre a vida e morte na Terra. Recentemente, a ameaça das alterações climáticas mostrou-nos que ou agimos a tempo e de forma concertada enquanto espécie, ou estamos em risco de sobrevivência. O coronavírus, que por ironia do destino tem resultado numa redução drástica das emissões poluentes para a atmosfera, veio relembrar a fragilidade da condição humana que a modernidade fez esquecer.

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