Nenhum homem é uma ilha isolada

E, de súbito, perante o medo, olhamos o Outro, esse diferente que ainda ontem nos era indiferente, e vemo-nos reflectidos, como num espelho, porque vemos nele aquilo que verdadeiramente importa: a Vida. E sabemos que quando os sinos dobrarem por essa Vida, eles estarão, também, a dobrar por nós.

Recordar esta frase de John Donne, nestes tempos em que tantos sinos dobram por tantas vidas que se perdem, pode ajudar-nos a recordar o real sentido da palavra comunidade.

A recordar esse sentido mais profundo, que faz destes todos que somos um só, e não esse sentido que se foi banalizando, ao sabor dos tempos e das modas, em que a mera partilha de um gosto ou de um passatempo já ganhava o epíteto de comunidade.

E, claro, acontece com os conceitos o mesmo que acontece na vida: quando algo pode ser tudo, rapidamente esse algo se converte num nada.

Mas, de repente, esta comunidade humana (que realmente somos) vê-se confrontada com uma realidade nova, se não na essência (a História da Humanidade fez-se, também, de pestes, pragas e epidemias várias), pelo menos na escala. A escala e a escalada dos números que nem as mais tenebrosas distopias foram capazes de conceber.

Os números que, regressando a Donne, são partículas de um continente ou, no caso presente, de vários continentes, porque são os números do Humano: os números das vidas perdidas, ou interrompidas, ou, simplesmente, em suspenso, como está, neste momento, a vida de qualquer um de nós.

E a comunidade, nesse sentido mais profundo, é solidariedade e é empatia. É a comunhão no sentido daquilo que é posto em comum, para além das diferenças e das distâncias (geográficas, culturais, religiosas ou sociais).

A comunidade obriga a que nos coloquemos em perspectiva e a que nos consciencializemos que, talvez mais do que responsáveis por nós próprios, somos responsáveis pelo Outro.

Nestes tempos em que o individual (e o individualismo) se sobrepõe a tudo o mais, em que o consumismo e a ambição nos apressam para, na maior parte das vezes, nos conduzirem a lugar nenhum, para além do lugar da insatisfação, dado que cada aspiração satisfeita é o embrião de uma nova aspiração a satisfazer, esta nova realidade de uma pandemia devastadora interpela-nos.

Mas interpela-nos muito para além das suas consequências óbvias, imediatas e urgentes, que são as da resposta a uma situação aguda de crise.

Interpela-nos no sentido de uma verdadeira introspecção, não apenas individual mas, sobretudo, a uma introspecção societária, acerca dos nossos valores, estilos de vida e prioridades, acerca das nossas relações com os outros e, ainda, acerca do modo como usamos o nosso tempo e usamos a nossa vida.

Interpela-nos a revalorizar essa dimensão de colectivo, que não é o colectivo das redes sociais ou do coleccionar, alegre, de amigos virtuais, quando nem sequer nos damos ao trabalho de cumprimentar o vizinho do terceiro andar, ou entramos no elevador do nosso local de trabalho e negligenciamos o mais elementar bom-dia.

Obriga-nos a olhar para além do nosso próprio umbigo, porque percebemos que os nossos umbigos humanos estão, afinal, muito mais ligados do que aquilo que nós e as nossas afinidades electivas poderíamos, até, gostar de reconhecer.

Somos, então, interpelados a reencontrar essa dimensão quase visceral do colectivo que, no fundo, foi aquela que permitiu a nossa evolução e a nossa subsistência como grupo humano e que, entretanto, se foi diluindo em nome da abundância, ou da vontade dela, em nome do poder ou da vontade dele.

E, de súbito, perante o medo, olhamos o Outro, esse diferente que ainda ontem nos era indiferente, e vemo-nos reflectidos, como num espelho, porque vemos nele aquilo que verdadeiramente importa: a Vida. E sabemos que quando os sinos dobrarem por essa Vida, eles estarão, também, a dobrar por nós.

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