Desnecessárias ou compreensíveis: a que tipo de dúvidas respondem os profissionais da Linha SNS24?

Nas últimas semanas, a linha do SNS24 tem atendido milhares de chamadas relacionadas com o novo coronavírus, com perguntas sobre sintomas, grupos de risco e procedimentos em caso de infecção. No entanto, segundo relatam alguns profissionais, nem todas as questões são “necessárias”.

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A linha SNS24 (808 24 24 24)? é uma das linhas de apoio médico em Portugal UNPLASH

Foi precisamente porque muitas chamadas ficavam por atender, ou iam abaixo, que esta semana a linha SNS24 (808 24 24 24)​ foi reforçada com a contratação de mais 81 enfermeiros. O objectivo é melhorar a capacidade de resposta perante o aumento de chamadas provocado pela epidemia do novo coronavírus. Mas nem todas são pertinentes.

Nos últimos dias, esta linha de apoio tem tido picos de procura e os operadores chegam a responder a milhares de chamadas por dia. Os profissionais que estão alocados à linha não têm tido mãos a medir. Mas, de acordo com três profissionais ouvidos pelo PÚBLICO, nem todas as chamadas que esta linha recebe são “necessárias”. Muitas vezes, são questões que podem ser mais facilmente esclarecidas pela informação disponibilizada pelas autoridades de saúde. Noutros casos, como realçam duas enfermeiras que trabalham há dois e há sete anos na linha SNS24 — e que preferiram não ser identificadas —, os profissionais de saúde já tiveram de responder a questões como “Posso ir jantar a um restaurante chinês?” ou reagir a pessoas que ligam só para dizer “Afinal não era nada” e desligam.

“Todas as chamadas que tenho atendido nos últimos dias têm sido sobre o vírus, o que é bastante incomum. Nos primeiros dias, recebia uma ou duas chamadas mais curiosas, em que perguntavam coisas como ‘Se for jantar a um restaurante chinês, posso apanhar o vírus?’, ‘Posso receber encomendas da China?’ ou “Viajei num avião que tinha muito chineses, será que eu tenho o vírus?”, explica uma das enfermeiras.

De acordo com a enfermeira com dois anos de experiência, logo no início da propagação do vírus a outros países que não a China, o epicentro da covid-19, e quando Portugal ainda não tinha casos confirmados, três em dez chamadas incluíam “este tipo de perguntas” e as restantes eram questões relacionadas com sintomas e possíveis infecções. “Ultimamente, todas as chamadas que tenho atendido são relativas à temática, mas pouquíssimas são efectivamente de pessoas que tiveram contacto com um caso confirmado ou suspeito”, refere. “Em dez chamadas, só algumas são de pessoas que precisariam mesmo de ligar.”

Ainda que admita que os profissionais de saúde compreendem que as pessoas se sintam assustadas, a enfermeira refere que o panorama actual não possibilita que “se matem curiosidades”. “Quando recebemos este tipo de chamadas, tentamos na mesma transmitir todos os dados que são fornecidos pela Direcção-Geral da saúde (DGS) e que estão sempre a ser actualizados”, avança. 

A segunda enfermeira ouvida pelo PÚBLICO refere que estas questões menos “pertinentes” surgem algumas vezes. No entanto, realça, atendendo à afluência de chamadas que a linha tem recebido, “é provável que essa informação esteja mais acessível noutra plataforma”.

“Tempo de repouso entre chamadas não existe”

E como é que se responde a questões deste tipo quando há o risco de a linha ficar entupida com chamadas? A profissional de saúde,que já conta com sete anos de experiência, explica: “Respondemos sempre de forma educada e explicamos que não é a forma mais correcta de expor esse tipo de questões”, explica. “Mas tentamos, mesmo assim, responder sim ou não à pergunta da pessoa.”

Por outro lado, as perguntas mais frequentes passam pelos sintomas da covid-19 (como se distingue uma febre dos sintomas do novo coronavírus, por exemplo), os grupos de risco, o período de contágio ou as regiões mais afectadas. Há ainda quem pergunte o que deve fazer no caso de ter estado em contacto com uma pessoa infectada ou como saber que alguém é portador do vírus. E nesta temática também lhe chegam perguntas como “O meu familiar tem que ficar restrito num quarto? O que fazemos aos talheres? E à casa de banho, que é de uso comum? Devo sair de máscara?”. “Estas informações estão todas no site da DGS e são [esses] os dados que fornecemos na chamada, daí que seja mais fácil verem lá primeiro do que estarem a contactar”, explica Maria.

Segundo a primeira enfermeira, é impossível precisar o número de chamadas que atende por dia — ou por hora. No entanto, consegue dizer que as chamadas demoram mais do que “o normal”. “Antes da epidemia costumava atender seis chamadas por hora, mas agora não consigo precisar [o tempo] porque as chamadas acabam por demorar mais, preciso de ir buscar informação. Uma chamada que poderia demorar dez minutos demora 20 ou 30”, expõe a enfermeira. Por outro lado, a colega com mais experiência refere que “o tempo de repouso entre chamadas não existe porque elas são quase constantes”.

Esta semana, o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas (CDSJ) pediu para que os meios de comunicação social “ponderem com muito cuidado a relação de custo – benefício de opções editoriais que possam pôr em causa o bem maior em nome do interesse público”. “Por exemplo, a utilização da Linha Saúde 24 para fins de reportagem, porque esse acto contribui para sobrecarregar as linhas telefónicas, numa utilização daquele meio de urgência destinado às pessoas que estão em situação de fragilidade psicológica e suspeitas de estarem infectadas, acrescentou a entidade em comunicado.

Linha não deve ser usada para “matar” curiosidades

Ao contrário destas duas enfermeiras, na experiência de outro dos colaboradores da linha SNS24, não existem assim tantas perguntas “descabidas” a entrar pelas linhas telefónicas. Existem, realça, muitas “confusões”, principalmente associadas à população chinesa. “Claro que há sempre algumas pessoas que, por falta de conhecimento ou por ouvirem muita informação conjunta e baralhada, fazem analogias que podem não ser correctas. E essas perguntas não são novidade agora com esta situação. Já recebíamos chamadas que muitas vezes parecem descabidas e que afinal não o são porque as pessoas não têm todas os mesmos níveis de literacia em saúde”, explica o colaborador, que também preferiu manter o anonimato.

O enfermeiro realça uma mudança em relação a perguntas sobre outras patologias que as linhas costumam receber. Isto porque, agora, as pessoas estão mais atentas a pequenos sintomas, como a tosse, que noutras situações até desvalorizavam. Em relação ao aumento da procura por respostas, realça que a situação não é assim tão diferente de um Inverno de gripes, apesar de admitir que a linha está muito mais concorrida.

Mesmo antes de ser diagnosticado o primeiro caso em Portugal, a linha já recebia chamadas sobre a epidemia de covid-19. “Havia pessoas com dúvidas porque iam viajar e não sabiam o que fazer, ou tinham familiares noutros países. Quando a DGS começou a fazer campanha da linha, e de cada vez que a linha é publicitada, nota-se um aumento das chamadas”, explica.

Além disso, os profissionais explicam que a linha é apenas “a porta de entrada” para o encaminhamento das pessoas e que depois, de acordo com cada caso, existem outras equipas médicas prontas a atender (como os profissionais da linha de apoio médico e os delegados regionais de saúde). A conclusão dos três enfermeiros é a mesma: a linha não deve ser utilizada para “matar” curiosidades nem para fazer exercícios. “Agradecemos que não liguem a não ser em caso de suspeita ou confirmação. Há muita informação e outras linhas que podem consultar para obter esse tipo de informação”, sublinha o colaborador da linha SNS24.

Esta semana, Graça Freitas, Directora-Geral da Saúde, referiu que a DGS está a trabalhar na criação de orientações específicas para determinados sectores dentro da linha telefónica do SNS24, como o hoteleiro, e grupos prioritários, como idosos que vivem em lares. Estão a ser também criados mecanismos que separem as chamadas para triagem daquelas que são apenas para ter informação. E, nesse sentido, Graça Freitas deixou o mesmo apelo dos três profissionais de saúde ouvidos pelo PÚBLICO, que já tinha sido feito pela ministra da Saúde: que as pessoas só usem a linha SNS24 para triagem e optem por consultar a Internet para os casos de informação.

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