Um pai a chorar

O pai do Daniel resiste enquanto, aos berros, cara a cara ou ao telefone, exige à escola a garantia das melhores universidades para o filho. Aos berros, sempre aos berros até deixar de berrar naquela tarde em que tivemos de lhe pedir para vir à escola depois de mais um dia daqueles do Daniel.

Foto
Warren Wong

Trabalho com pais todos os dias. Com pais e mães. Zangados, furiosos, incompreendidos, incapazes de compreender, de compreender a escola, as expectativas, incapazes de compreender os professores, as quatro paredes da sala de aula onde os filhos insistem em crescer, crescer e crescer sem parar, nem sempre na direcção certa, depende dos pais.

Dos pais e da condição social, económica, habitacional dos mesmos. Há uma rede social de apoio ou não? Onde estão os avós, tios e tias? Os pais vivem juntos? Normalmente não. Trabalham? Normalmente não. A mãe e os filhos vivem no mesmo quarto e na mesma cama juntamente com os primos, os tios e a avó, todos juntos na sala entre o sofá e o chão? Ou já não têm casa, vítimas de um capitalismo desenfreado mais a especulação financeira? O filho vive com a avó a uma boa hora de distância enquanto a mãe vive num quarto partilhado numa casa partilhada igualmente longe mas na direcção oposta? E isto partindo do princípio de se ter um amigo ou amiga com quem partilhar quarto.

E quando os pais não se separaram, morreram e já perdi a conta aos órfãos, normalmente de pai, entregues nestas mãos, não sei se por culpa da agressividade natural desta cidade, das ruas, ou do desemprego certo num país avesso à mobilidade social e onde os meninos perdidos entretêm as horas como bandos de pardais na rua.

Uma coisa é certa: o trauma e a perda estão presentes nestas crianças, nestes pais, e só não está presente quem é mais preciso, mais querido, para sempre perdido na outra margem do mar.

Por isto, pelo passado e pela dor, já sabemos ao que vimos quando um aluno e o seu pai ou mãe nos atravessam a porta ou não fosse o nosso papel ajudar. Mas os pais, zangados, cansados de falsas promessas, fartos de esperar, não querem ajuda mas uma resposta, e uma resposta já!

Foi este o caso do Daniel, do Daniel não, do pai dele, homem duro, agressivo, alto, ameaçador cara a cara e ao telefone, sempre ao ataque, sempre a acusar os professores de serem os únicos responsáveis pelas más notas de quem não quer, nunca quis, nem vai querer estudar. Mas o Daniel queria estudar. O Daniel queria ir à escola e às aulas até a mãe adoecer, fruto de uma doença degenerativa galopante e de prognóstico certo.

Foi uma questão de meses. Uma questão de meses até o Daniel perder a mãe e o pai do Daniel perder a mulher de uma vida mais a casa, o tecto e o chão de sempre. Sem dinheiro, vivem hoje num quarto onde em cinco metros quadrados cabem todas as derrotas e frustrações, uma cama, um bico de gás e uma torneira. A casa de banho é comum num prédio da Segurança Social onde cada quarto custa, pelo menos, o equivalente a 450 euros por mês.

O prédio é um edifício de escritórios convertido por privados em pequenos apartamentos e arrendado à Segurança Social a peso de ouro. Não é caso único. Existem prédios destes espalhados um pouco por todo o país, dentro dos quais encontramos o fim da sociedade entre chamadas constantes para a polícia, a polícia que não vem e a polícia que tem medo, agressões, consumo de droga nos corredores, violência doméstica, alcoolismo, prostituição, máfias organizadas, desespero e medo, muito medo, medo que nos arrombem a porta e o corpo apenas porque sim, porque naquela noite estavam para ali virados e não há quem nos acuda.

Paz, pão, habitação, dizia a música, e quando num dos países mais ricos do mundo a falta de habitação própria empurra centenas de milhares de famílias para a insegurança e para o medo, então estamos de volta ao chão, a rastejar no chão. Despojados de tudo, entregamo-nos ao instinto mais básico: a sobrevivência.

O Daniel e o pai sobrevivem há três anos num quarto, habitação temporária, ou assim lhes disseram, apenas por uns meses e até encontrar casa. Mas não há casas. Em Londres, um T2 custa 250 mil euros e não há dinheiro. Não há emprego. Não há futuro, mas pior, também não há presente, os dias vivem-se um de cada vez sempre à espera do fim antecipado.

Apesar de tudo, o Daniel resiste, todos os dias a correr de sala em sala, a fazer a vida negra aos professores e colegas. Apesar de tudo, o pai do Daniel resiste enquanto, aos berros, cara a cara ou ao telefone, exige à escola a garantia das melhores universidades para o filho.

Aos berros, sempre aos berros até deixar de berrar naquela tarde em que tivemos de lhe pedir para vir à escola depois de mais um dia daqueles do Daniel, nem por isso cansado de correr por cima de mesas, cadeiras e professores enquanto canetas e livros voam atrás das tintas e pincéis chutados para a rua e por cima da vedação da escola juntamente com todas as bolas de futebol do ginásio. Aos berros, sempre aos berros, até deixar de berrar naquele momento em que lhe saltou da boca as saudades da mãe do Daniel. A voz, presa na garganta, faltou naquele momento e em poucos segundos os olhos encheram-se de mar nos nossos braços a soluçar, os olhos a soluçar, os braços a soluçar, um homem grande e forte a soluçar o corpo todo em solavancos enquanto eu e minha colega fazíamos força para não soluçar também, agarrados a este homem para não cairmos os três.

O Daniel não disse nada. Saiu da sala, nunca disse nada, ainda não consegue dizer. Sente imensamente a ausência da mãe e cada gesto, cada salto, cada pontapé, cada corrida, cada esforço é uma tentativa desesperada para não deixar a mãe partir, para não se esquecer da cara, para não se esquecer da voz.

Desde aquela tarde, o pai já não grita nem berra, faz perguntas, pede ajuda, ouve e é ouvido. Sabe que não nos vamos embora, nunca fomos, estamos aqui, presentes, para ele e para o filho. Mas não podemos substituir uma mãe nem ter essa pretensão. Essa viagem terá o Daniel de a fazer enquanto cresce para se assemelhar ao pai, alto, forte, de musculatura desenvolta, uma carapaça de força para esconder as fraquezas de quem não consegue falar. Quando esse dia chegar, quando lhe faltar a voz e os olhos se encherem de mar e o corpo de solavancos, o Daniel voltará a estar com a mãe. Quando esse dia chegar, o Daniel já não vai ter medo de nos dar a mão.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários