Advogados Coronafree

Se o Governo e o Ministério da Justiça não respeitam os advogados e solicitadores, ao menos não sejam tão evidentes quanto aos cidadãos. São muitos votos que podem perder.

Afinal, há uma classe profissional que está imune ao vírus. Estou já a imaginar um acréscimo do numerus clausus nos próximos concursos nacionais para o ensino superior nas licenciaturas em Direito e Solicitadoria.

Como já tem acontecido em outros momentos, os mandatários judiciais – advogados e solicitadores – são tratados pelo Governo como figuras inexistentes ou meramente decorativas.

Bem andou o Conselho Superior da Magistratura ao determinar que apenas se praticam em juízo (e algo de similar foi determinado pelo Conselho Superior do Ministério Público) os actos processuais urgentes, já esclarecido este conceito como “todo o serviço urgente referido no art. 36.º, n.º 2 da LOSJ [p. ex., processos sumários, em que a rapidez do início do julgamento é requisito para se aplicar esta forma especial de processo – e que podem aumentar muito com o incumprimento de normas cominadas sob pena de desobediência]; diligências processuais relativas a menores em risco ou tutelares educativos de natureza urgente; diligências/julgamentos de arguidos presos; todas as demais diligências, de qualquer jurisdição, que juízes, no seu prudente arbítrio, entendam dever ser realizadas nas quais possam estar em causa direitos fundamentais ou sejam destinadas a evitar dano irreparável, designadamente prescrições processuais”.

Que nos diz o Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13/3? No seu art. 14.º, não se procede, como se deveria, em minha óptica, a uma suspensão da contagem dos prazos processuais e de direito substantivo, até ao fim da pandemia, como é típico de uma lei de emergência como esta, mas apenas se “confere” a possibilidade – que em si nada tem de novo – de o mandatário invocar justo impedimento para não praticar tempestivamente o acto.

Para quem não é de Direito, trata-se de uma figura em que, quando um facto totalmente estranho à vontade da parte (ou seu mandatário) impede a prática atempada do acto, o mesmo pode ser levado a cabo mal cesse essa situação, comprovando-se a mesma e praticando-se logo o dito acto. É de referir que os tribunais superiores têm, a meu ver mal, em muitas ocasiões, feito uma interpretação demasiado restritiva do justo impedimento, em especial quando para as partes e sujeitos processuais (seus mandatários) os prazos são peremptórios – se não praticados até uma certa data, não mais o podem ser –, enquanto o entendimento generalizado é o de que os actos a praticar por juiz ou procurador são meramente indicativos, ordenadores.

Ora, e aqui é que é de pasmar, se o mandatário está em casa em isolamento voluntário ou determinado pelas autoridades de saúde, tem de obter “declaração emitida” por essas mesmas entidades, “que ateste a necessidade de um período de isolamento destes por eventual risco de contágio de covid-19”, declaração esta que também serve como “fundamento de justificação de não comparecimento em qualquer diligência processual ou procedimental, bem como do seu adiamento”. Não só é irracional a medida – por importar um acréscimo de risco de contágio –, como iníqua em função dos demais “operadores judiciários” que (e bem) podem trabalhar a partir dos seus domicílios, excepto nas diligências processuais urgentes.

Numa altura em que a aplicação das medidas excepcionais já tomadas e as que inevitavelmente virão, implicarão uma sobrecarga sobre o sistema de justiça, exigia-se mais respeito por aqueles que a Constituição diz serem “elemento essencial à administração da justiça” (art. 208.º).

Outro ponto. Não tenho dúvidas que a CPAS (Caixa de Previdência de Advogados e Solicitadores) terá de conceder uma moratória no pagamento das contribuições, à luz do ponto 13, d) da Resolução do Conselho de Ministros n.º 10-A/2020, de 13/3: “promoção, no âmbito contributivo, de um regime excepcional e temporário de isenção do pagamento de contribuições à segurança social por parte de (…) trabalhadores independentes que sejam entidades empregadoras”. Quanto ao mais, já se sabe que não compete ao Estado garantir um mínimo de sobrevivência a um profissional liberal.

Mas é este mais um momento para repensar a CPAS como caixa de previdência que, na verdade, nunca o foi. É só uma caixa de pensões, há pouco integrada por um medíocre seguro de saúde e sem qualquer tipo de prestação social que pudesse acorrer a situações como esta. Sei bem que o problema tem décadas e atravessou várias direcções daquela instituição que é juridicamente autónoma das duas ordens profissionais em causa. Mas pagar cerca de 250 euros por mês apenas como PPR – como sucede comigo e com todos os Colegas (há quem pague mais) – é francamente pouco.

Um pouco mais de respeito, do bom, faltou ao Governo para com os mandatários judiciais que, recorde-se, desempenham uma relevante função social por representarem interesses de qualquer cidadão que a eles recorre ou para quem um de nós é nomeado. Se o Governo e o Ministério da Justiça não respeitam os advogados e solicitadores, ao menos não sejam tão evidentes quanto aos cidadãos. São muitos votos que podem perder.

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