De roubos está o mundo cheio, mas alguns são mesmo injustos

Não tendo a mota valor especial de mercado, não foi um roubo para colocar dinheiro que se visse nas mãos de quem a levou.

Foto
Adriano Miranda

A campainha tocou quando eu, já de pijama vestido, me preparava para lavar os dentes e enroscar-me no sofá em frente a um programa de televisão qualquer. À porta estava a minha vizinha, que respondeu à minha tentativa de perceber o que queria com um ar misterioso e um “já vais ver”, enquanto me mostrava uma pen que trazia na mão.

A presença de uma pen nas mãos da minha vizinha, que não é muito versada em informática e nem sequer tem computador, era algo inusitada e deixou-me perceber que a visita nocturna não se destinava a alguma troca de recados rápida. E a resposta veio logo a seguir (porque a manutenção do suspense também não é o forte da minha vizinha): tinham roubado a mota do marido dela. Mais, tinham roubado a mota de dentro da garagem do prédio e estava tudo filmado pelas câmaras de segurança.

Fiquei assim a saber que existem câmaras de segurança na garagem do prédio, algo que desconhecia por completo. E com verdadeira pena do meu vizinho. Porque a mota é uma extensão dele há décadas. Se calhava de nos cruzarmos na rua, quase sempre lá ia ele montado na pequena mota. E, às vezes, quando saía do prédio, deparava-me com o exercício um pouco lento da minha vizinha (que não é uma mulher pequena) a tentar acomodar-se na viatura, atrás do marido (ele sim, bem mais franzino), que a havia de transportar a um dos locais onde faz limpeza.

A mota do meu vizinho não é de colecção nem sequer é uma máquina do caraças. É só uma motinha, que ele já tinha, segundo as contas da mulher, há uns bons 24 anos. E, apesar de não valer mais que umas poucas centenas de euros, dava-lhes jeito, dava mesmo muito jeito, porque os dois já passaram os 60 anos e a mota era o único meio de transporte do casal para distâncias mais longas ou para os ajudar a transportar os sacos mais carregados de compras.

Foi, assim, já cheia de pena do meu vizinho, que deve estar muito infeliz por ter perdido a sua pequena mota, que liguei o computador para podermos ver as imagens das câmaras de segurança que alguém tinha copiado para aquela pen. Ainda antes de fazer a ligação, já a minha vizinha me explicara que os responsáveis pelo roubo eram dois rapazes, um mais forte do que o outro, que, pelos vistos, tinham a chave da porta pequena da garagem e que não aparentavam ter qualquer outro interesse no que lá estava, além da pequena mota: foram direitos a ela, só quiseram saber dela, só ela foi roubada. E nem sequer esperaram pela madrugada para correrem menos riscos de não serem surpreendidos por alguém. Eram 21h20 quando entraram na garagem.

Estávamos prontas para vermos com atenção cada pormenor do momento do roubo, quando percebi que o ficheiro em que alguém tinha gravado o vídeo não era compatível com os programas que eu tinha no computador. Ainda tentámos abrir aquilo recorrendo a um programa diferente, mas o sistema pedia-me uma palavra-passe de que o meu cérebro se esqueceu e acabámos por desistir. Nada feito.

Já com o computador desligado, a minha vizinha continuava a fornecer mais pormenores do caso. Que os rapazes deviam saber da existência das câmaras porque levavam ambos bonés com
pala e um casaco com capuz e mantiveram as cabeças baixas, impossibilitando que se lhes
visse o rosto; e que o único aspecto que correu mal foi a incapacidade de abrirem o portão da garagem para subirem a rampa com a mota, sendo obrigados a retirá-la pela estreita porta de acesso às pessoas. Além disso, contou, o marido recordava-se agora de que, uns dias antes, um
tipo qualquer o questionara sobre a mota, elogiando-a e dizendo que já devia ter muitos anos.

Antes de nos despedirmos, ainda sugeri que o melhor era comprarem outra mota, só para não ficarem apeados. Mas a minha vizinha disse que eu devia estar maluca. “Ele já tem 66 anos, vamos agora comprar outra mota para quê? Para mais uns poucos anos?” Não insisti, eles lá sabem, mas já depois de ela sair não pude deixar de pensar que aquele roubo era particularmente injusto.

Porque, não tendo a mota qualquer valor especial de mercado, não foi, de certeza, um roubo destinado a colocar dinheiro que se visse nas mãos de quem a levou. Foi para quê, então? Para que algum recém-encartado pudesse ter um veículo de treino que não fosse muito intimidador? Uma aposta? Para estourar em alguma corrida maluca? Ou uma vingança contra o paz de alma
do meu vizinho? Podia consolar-me a dizer que fora uma questão de verdadeira necessidade, que a mota está neste momento a tornar suportável a vida de alguém que, de outro modo, ficaria, sei lá, impedido de aceder a um emprego, por exemplo. Mas duvido. Ladrões com consciência é uma coisa bonita para um filme, mas não sei se andam por aí aos pontapés. E continuo com pena do meu vizinho.

Sugerir correcção
Comentar