A peste do medo

Este é o momento mais importante no combate colectivo à pandemia. O que fizermos agora definirá o nosso futuro enquanto povo e enquanto seus membros.

Como tantos de nós já nos apercebemos, os últimos dias têm tornado premonitórios textos como A Peste, de Camus, Ensaio sobre a Cegueira, de Saramago ou várias obras de ficção científica. Do mesmo passo, têm-nos acudido ao espírito surtos como a peste negra, a bubónica, a influenza espanhola e tantas doenças que, ao longo de séculos, foram dizimando a Humanidade.

Em todas elas e na actual há um traço comum: o medo. O desconhecido gera sentimentos de desconfiança, de fuga ou isolamento, de diabolização do outro – enquanto aponto o dedo não mo apontam a mim –, de comportamentos contrários às indicações – é uma outra forma de lidar com o desconforto, fazendo-nos crer, erradamente, que somos invencíveis e que estamos acima do desconhecido – e de disseminação do que causa desconforto – vejam-se as fake news, aqueles que sadicamente põem a circular supostas “notícias” com o gozo de um Nero que vê a cidade arder. Tudo reacções descritas na Psicologia, na Psiquiatria e no simples conhecimento da essência humana em que todos – ou quase – somos catedráticos, por partilharmos a mesma matéria.

Este é o momento mais importante no combate colectivo à pandemia. O que fizermos agora definirá o nosso futuro enquanto povo e enquanto seus membros. Não sou epidemiologista, perito em saúde pública, como, afinal, temos milhões em Portugal. É também normal que, de repente, sobre um assunto que nos preocupa, muitos se tornem “especialistas”. É mais uma estratégia para dominar o medo por via de um sentimento falso de “controlo” da informação. Donde, essencial é diminuir o consumo de muito lixo que anda nas redes sociais e, mais do que nunca, ser selectivo nas fontes de informação. Se ainda restassem dúvidas sobre o facto de esta ser a era das fake news – fenómeno em si velho de séculos, mas com uma dimensão inusitada fruto das novas tecnologias da informação e comunicação –, aqui está a prova.

O medo não nos pode paralisar. Cumprindo as recomendações, a economia tem de continuar a funcionar, sob pena de não sermos capazes, enquanto colectivo, de ajudar quem precisa de ser tratado. O trabalho de cada um de nós, se e na medida em que puder ser feito sem risco próprio e para terceiros, é mais um ventilador a que se liga uma vida. Se a economia pára, nem sequer existirão medicamentos, dispositivos médicos, ventiladores, camas de hospital e tudo o mais que nesta fase aguda se afigura crucial. E sim, com a graça de Deus, haverá vida depois deste momento que convida à histeria colectiva. Não podemos ceder a ela, nem contribuir para agravar as já criadas condições perfeitas para um tsunami económico que virá. Só falta saber a sua gravidade. Até agora, tirando alguns episódios rocambolescos, tenho sentido orgulho em ser português. E julgo que continuarei – continuaremos – a ter.

A começar em todos os profissionais de saúde e a acabar no comum dos trabalhadores, todos somos convocados a cumprir a nossa parte nesta cadeia de responsabilidade. Só ela acaba com cadeias de transmissão. E, por favor, sabendo que provavelmente a nossa essência é má, façamos o contrário do que situações-limite parecem impor: a lei do mais forte. De nada adianta falar em crimes de açambarcamento, de desobediência, saber ou não se a Constituição permite a imposição coactiva de confinamento profiláctico ou já depois de a doença se manifestar. Se as pessoas sentirem que a situação é de “cada um por si”, o Direito perde todo o seu campo de manobra. Não há Direito em revoluções. E se esta for uma revolução do medo, esqueçam as normas jurídicas. Se houver a sensação de que isto é o “salve-se quem puder”, o âmago do ser humano justifica as condutas mais bárbaras e aí nem sequer existirão instituições do Estado para implementar o Direito.

É também um bom momento para alguns juristas relativizarem o valor da sua ciência. Ele só existe se e na medida em que a comunidade, em regra, a valida e a reconhece como importante e proporcionada. É neste momento que nos encontramos, creio, o do justo equilíbrio entre o tão humano medo e a racionalidade do seu controlo. Pedimos demais a cada um de nós? Pedimos o que o momento nos exige e estou seguro que, em especial em Portugal, com tantos séculos de História, esta não é a mais grave crise que vivemos. Se superámos as mais perniciosas, com responsabilidade, bom senso e maturidade cívica também levaremos esta de vencida.

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