A Universidade sem professores

Não seria de todo inimaginável que o provisório passasse a definitivo, e que uma solução de recurso viesse a ser a porta que esperava ser aberta para uma transformação radical do sistema de ensino universitário.

No seu livro Contagious: Cultures, Carriers and the Outbreak Narrative, Priscilla Wald analisa a génese e cristalização de uma fórmula narrativa mundial sobre doenças transmissíveis: a “narrativa do surto”. Não sendo porventura o termo “narrativa” o mais apropriado, já que vem amalgamar “relato”, “representação” e “ritual”, a análise é ainda assim perspicaz: evidencia que, desde o HIV ao SARS, as declarações de pandemia desencadeiam fenómenos de histeria colectiva com estruturas discursivas e agenciais recorrentes: os tipos de personagens e seus posicionamentos, os estágios do drama e as formas vocabulares de um novo surto elaboram-se sobre os do surto anterior.

A “narrativa do surto” começa com a identificação de uma infecção emergente, ilumina mediaticamente casos paradigmáticos de contacto e contágio, espraia-se em definições e descrições de “pacientes zero”, “transmissores” e “sintomas”, debita estatísticas efémeras e contraditórias, e termina em panegírico do trabalho epidemiológico transnacional que a finalmente contém. Merece também atenção a conexão genealógica que a autora estabelece entre a dramatização dos pânicos colectivos despoletados por narrativas de surtos microbianos contemporâneos e aqueles causados, durante o período da Guerra Fria, pelas ameaças alienígenas, os sequestros, as lavagens cerebrais e outras fantasias de ficção científica.

Uma “narrativa” tem sempre um contexto ideológico e uma das consequências – como nos mostrou à saciedade a “guerra contra o terrorismo” – é a instalação de políticas públicas que tendem a aumentar a capacidade de intrusão das autoridades nas esferas privada e comunitária. Uma crise é sempre uma oportunidade de mudança.

O presente drama global – a pandemia do coronavírus (que está para a covid-19 um pouco como o Terreiro do Paço está para a Praça do Comércio) – tem produzido alterações extraordinárias na normalidade da mobilidade internacional, nacional e local. Os seus efeitos humanitários, sociais, económicos e políticos são ainda incalculáveis. Mas há um domínio em que a sua previsibilidade parece ser já semi-manifesta, e o qual tenho seguido mais de perto: o do ensino e, em particular, o universitário. O cancelamento coercivo de eventos internacionais, a suspensão de aulas e o encerramento de instalações são apenas a face mais imediata e visível da reacção-transformação em curso. O interessante (ou o preocupante, conforme o ponto de vista) é a recorrência com que expressões como “e-learning”, “ensino à distância” e “ferramentas digitais” têm emergido como soluções de aparência paliativa, para precaver quebras na acção lectiva e certificadora das universidades.

Por curiosidade diletante, tenho lido alguma literatura sobre o impacto da peste bubónica no mundo universitário medieval. Por comparação com o conjunto das populações afectadas no séc. XIV, o meio universitário parece ter sido relativamente poupado. Nos casos para os quais há dados quantitativos, os casos fatais mostraram ser bastante reduzidos e os números globais, seja da população estudantil ou docente, não sofreram grandes alterações ao longo do século. Mas há uma correlação temporal entre os anos de ocorrência da “peste negra” e certas transformações (certos autores falam especificamente de “declínio”) na qualidade do ensino, na organização dos curricula e na preparação prévia dos estudantes. É fortemente provável a peste negra ter causado alterações no mercado de trabalho e nas expectativas dos estudantes. É até possível que tenha contribuído para reforçar uma tendência para a reorganização interna das universidades (como aconteceu com a criação dos colleges de Oxford). Mas os dados parecem sobretudo apontar para o facto de a crise interna, relacionada com o seu financiamento, ser anterior à epidemia.

Uma analogia histórica vale o que vale como argumento. Serve para pouco, para além de nos inspirar a reflectir sobre o presente, sem quaisquer pretensões deterministas. Seria difícil argumentar em poucas palavras sobre a realidade da crise em que as universidades se encontram actualmente. Que, de corporações elitistas, se transformaram em empresas certificadoras de massa, parece haver pouca dúvida. Que a desqualificação do estatuto e funções dos docentes e investigadores é generalizada, também é certo. Que a precarização do trabalho universitário serve sobretudo os interesses das gestões empresariais é inquestionável. E já se falava de “e-learning” e de “ensino à distância” muito antes da epifania que o coronavirus parece estar a provocar nos gabinetes das reitorias e conselhos directivos universitários. Mas não seria de todo inimaginável que o provisório passasse a definitivo, e que uma solução de recurso viesse a ser a porta que esperava ser aberta para uma transformação radical do sistema de ensino universitário. Os gestores já andavam a questionar há muito a racionalidade económica de manter um corpo docente contratado que cria problemas constantes no deve-e-haver das instituições. Mas não há como uma boa “narrativa do surto” para fazer vingar a solução óbvia: a universidade sem professores.

 Prof. Associado, ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa

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