Segurança Sanitária e Estado de Emergência

A solução é assumir a gravidade do assunto e agir em conformidade com as regras constitucionais que existem sobre o estado de emergência, na sua versão de calamidade por epidemia

1. Quando, em 1999, defendi a minha tese de doutoramento sobre o estado de exceção constitucional, sob a inteligente e contundente arguição de Marcelo Rebelo de Sousa, estava longe de pensar em escrever hoje, volvidos 21 anos, este artigo de opinião.

Na verdade, a exceção constitucional, sendo um tema clássico da Teoria da Constituição, é um daqueles assuntos que ninguém deseja tratar senão pelos livros e no qual se sente uma permanente inadequação do regime estabelecido.

Isto reconhecendo, embora, toda uma longa e árdua história jurídico-política de afirmação do direito de necessidade do Estado perante os múltiplos riscos e ameaças que a evolução da Humanidade tem vindo a multiplicar.

2. Essa ideia da inadequação das estruturas de defesa extraordinária da Constituição já tinha sido muito notória no tempo da intervenção estrangeira sobre as nossas finanças com a troika e o PAEF.

Falou-se em muitas inconstitucionalidades, sobretudo pelos cortes e redução de salários, sem que para o efeito tivesse sido declarado qualquer estado de exceção, de resto nem sequer previsto na Constituição em tais termos.

O pior foi a dificuldade que o Tribunal Constitucional teve para encontrar um diapasão certo para dirimir um problema que de económico-financeiro logo se tornou político-social, sendo “arrastado” para o pantanoso terreno da judicialização constitucional da Política.

3. Eis que o COVID-19 nos coloca noutra situação dilemática de preservação da legalidade constitucional num ambiente em que é necessário manter a segurança sanitária dos cidadãos.

Neste contexto, a segurança que o Estado deve prover como bem público já nada tem de ver com as dimensões clássicas da segurança externa ou interna, mas antes se prende com o que tem sido chamado pelos Estudos de Segurança como “novas seguranças”.

Nem de propósito desde 1994 as Nações Unidas bem têm sugerido a mudança de um paradigma: o da segurança político-estadual clássica para o da “segurança humana”, na qual a pessoa é que deve ser o critério fundamental das providências a declarar com vista à sua defesa.

4. Está fora de dúvida questionar a intervenção que se mostre proporcionada para prevenir, minimizar e superar os malefícios do COVID-19.

O problema é outro: é saber da legitimidade e dos limites dessa intervenção, sendo certo que a mera invocação de uma cláusula geral de necessidade – lembrando o que era comum aceitar na Roma Antiga através do princípio “salus publica suprema lex” – pode tornar-se tanto perigosa porque excessiva quanto injusta porque violando direitos fundamentais elementares.

Decerto que alguns obstáculos podem ser superados a uma intensidade mais baixa ao nível do estado de necessidade administrativa. Mais complexa será a limitação dos direitos constitucionais, quando estiverem em causa as nossas liberdades de circulação, de entrada e saída do território nacional, o nosso direito ao salário, o direito ao geral funcionamento dos organismos públicos, etc.       

5. A solução é não reconhecer a limitação destes direitos? Não. A solução é assumir a gravidade do assunto e agir em conformidade com as regras constitucionais que existem sobre o estado de emergência, na sua versão de calamidade por epidemia, nos termos do art. 19º da Constituição.

Por incrível que pareça, há vantagens na declaração formal de tais limitações: a certeza da extensão da limitação dos nossos direitos pelos poderes públicos, como a aceitação da legitimidade da sua intervenção.

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