Para além da espuma destes dias

Em Portugal existem teses académicas, produção bibliográfica diversa, opiniões de elementos de segurança, decisores políticos, comentadores desportivos todos contra a violência no desporto e fenómenos correlativos. Mas no mesmo universo é bem menor o número daqueles que são contra a existência de claques, um dos alfobres principais do fomento do ódio. Contrariamente, muitos até reconhecem que, aquilo que a legislação portuguesa trata como “grupos organizados de adeptos” pode ser um elemento agregador e identitário da festa. Assim se saibam comportar. De facto o problema está aqui: no comportamento.

Conheço e frequento o meio para saber que, por cada um que lamenta este estado de coisas, se levantam dez a defender a bondade dos grupos legalizados de adeptos. E com bons exemplos. A opinião recorrente, e partilhada por muitos, é que estas máquinas de fomento de violência não são todas iguais, têm gente boa, civilizada, bem comportada, colaboradores das forças de segurança, activos em campanhas de solidariedade social e que é apenas meia dúzia de arruaceiros que estraga a festa. E que expurgados que sejam esses elementos, no limite impedindo-os de entrar nos recintos desportivos, o espaço desportivo passa a ser um local recomendável. É o princípio do mal menor. Porque, aqui chegados, uma outra tese faz escola.

É uma tese, de natureza securitária, que defende que juntos os protagonistas são mais facilmente enquadráveis e que dispersos, sem um líder com quem as autoridades possam “dialogar”, levantam problemas complexos do ponto de vista da segurança. É provável que já não cheguem os carros de combate no exterior, o armamento sofisticado, os polícias a cavalo, os cães, os torniquetes, as revistas à entrada, os controlos no que se transporta, as câmaras de vigilância, o oficial e os regulamentos de segurança, os detectores de teor alcoólico, os paisanos infiltrados, os auxiliares de segurança, o controlo das pontes e das zonas de serviço e toda a parafernália em que se transformou a segurança em alguns dos espaços que acolhem o espectáculo desportivo. Mas a ser assim, e parece que é, estamos perante a confissão assumida de que o Estado e as forças de segurança estão reféns das claques.

Um dia que uma claque fosse um espaço normal de simpatia, de tranquilidade e de fervor clubístico não precisava de qualquer organização especial: juntava-se aos muitos milhares que lá estão a puxar pelo clube e a participar no espectáculo. Mas isso não chega. O mecanismo identitário das claques requer outros ingredientes. Uma outra organização e uma hierarquia paramilitar. As razões não são de natureza estritamente desportiva. E são socialmente inaceitáveis e moralmente condenáveis.

A evolução deste problema não deixa também de estar associada ao aparecimento de fenómenos de tipo social ligados a grupos portadores de ideologias racistas, fascistas e extremistas, os quais procuram infiltrar as claques e espalhar a violência gratuita. Existe uma extensa bibliografia que o documenta e os serviços de informação conhecem o problema. Mas o que já era um problema grave no plano da segurança acentuou-se com a clara ligação/infiltração destes movimentos por grupos de crime organizado seja no domínio do tráfico de droga, corrupção, associação criminosa, branqueamento de capitais ou da manipulação de resultados.

Olhar para as claques como grupos organizados de adeptos ligados pela filiação e paixão clubística é não perceber que o que está para além disso é suficientemente perigoso para a segurança no desporto e na sociedade. E interroga-nos a todos sobre se levamos em devida conta o perigo social que representam. Tratar os líderes das claques como uma espécie de parceiros sociais, respeitáveis cidadãos, os quais há que ouvir, porque são socializáveis, é qualquer coisa que choca quem tenha da vida em sociedade valores e princípios cujo limite, se ultrapassado, nos desqualifica, descurando a ameaça que representam a uma função essencial de soberania num Estado de direito: a salvaguarda da ordem pública.

Toda a evidência nacional e internacional e muitos dos estudos que abordam estes fenómenos são conhecidos. E, portanto, repito o que se sabe: uma parte significativa das claques são grupos de acolhimento ao crime organizado: escondem-no e fomentam-no. E das duas, uma: ou a tese é especulativa e não tem comprovação prática ou, se tem, a pergunta a fazer é esta — porque se quer manter legalizado algo que pura e simplesmente deveria ser interditado?

Ao longo do tempo resisto a uma tendência possível para explicar este estado de coisas: a economia das claques. Ou, numa linguagem mais terra a terra, quem ganha financeiramente com a sua existência. Ganha muita gente e muitas entidades. Umas respeitáveis e outras pouco recomendáveis. Mas não querendo enveredar pela tese conspirativa de que são interesses financeiros que alimentam a sua existência, não resisto a perguntar algo que é politicamente relevante: qual é o custo financeiro que os portugueses têm de suportar para manter o comportamento das claques e as suas acções protegendo pessoas, bens e propriedades privadas e públicas? E qual o custo quando comparado com outros eventos de natureza pública que movimentam multidões?

Aqui chegados estamos perante um verdadeiro segredo do Estado. Quem o sabe não o divulga em termos que torne perceptível ao cidadão comum perceber quanto custa e para onde vai aquilo que é uma verdadeira operação militar sempre que ocorrem jogos de elevado risco. E quem pode perguntar, como por exemplo o Parlamento, tem outras prioridades.

Quero acreditar que para muitos portugueses talvez não fosse perda de tempo perceber os contornos deste fenómeno, até para se poderem entender muitas das teses legitimadoras do enquadramento legislativo da má educação e de comportamentos incivilizados.

Porque o que está a acontecer desqualifica o desporto, retira-lhe a dimensão cultural que civilizacionalmente o marcou e interroga-nos a todos sobre o que fazer para limitar esta degradação do espectáculo desportivo.

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