Da Smart City à cidade inteligente e criativa

No final, esperamos todos que esse cadinho de humanidade que é a cidade inteligente e criativa tenha efetivamente ocorrido, de preferência num lugar privilegiado da nossa pessoal circunstância.

Na sociedade do conhecimento o meu pressuposto é simples, todos os territórios têm uma inteligência coletiva tácita ou implícita que os seus principais atores e representantes podem explicitar e desenvolver se forem capazes de resolver os seus principais défices de conhecimento. Não há, portanto, nenhum fatalismo ou determinismo especial com um território, simplesmente, na sociedade do conhecimento a origem dos problemas reside num défice de conhecimento que é necessário colmatar.

A grande questão reside em saber até que ponto um determinado território é não apenas um objeto de conhecimento, mas, também, um território-desejado. Estas duas inteligências, racional e emocional, precisam de estar reunidas e convergir adequadamente. Se, ao contrário, um território for percebido como um mero recipiente, a inteligência emocional e a inteligência racional nunca se encontrarão para um grande projeto de futuro. Nestas condições muito dificilmente conseguiremos um território inteligente e criativo e isto por mais relevante que seja o “contributo smart” da inteligência artificial e da internet dos objetos.

Smart City, os mitos da cidade dos instrumentos e dos dispositivos

A smart city (SC) é a cidade dos instrumentos e dos dispositivos tecnológicos e digitais, ela é uma cidade performativa, uma cidade máquina, a cidade do marketing, dos índices e dos rankings. A cidade inteligente e criativa (CIC) incorpora os instrumentos e dispositivos da smart city mas a filosofia do seu sistema urbano e “as propriedades emergentes” da sua modelação dinâmica não seguem as mesmas prioridades e a mesma linha de rumo. Neste sentido, a cidade inteligente e criativa é, também, uma cidade ecologicamente inteligente e criativa, uma cidade socialmente inclusiva e solidária e, finalmente, uma cidade que experimenta novas formas de regulação e governação.

Um tópico sintomático são os mitos em redor da smart city. De resto, não é possível esta referência sem a invocação das empresas multinacionais que inspiraram os modelos respetivos de modelação urbana: modelo IBM (smarter cities), modelo Siemens (smart city), modelo Microsoft (city next), modelo Google (sidewalk lab), modelo Cisco (global intelligence urbanization) e modelo Esri (smart city 3.0).

Com esta verdadeira armada tecnológica não é de surpreender que o mito da auto-realização pela tecnologia seja um dos mais promissores. A sedução e o deslumbramento tecnológicos estão, de resto, ao serviço de outros mitos coadjuvantes como sejam os mitos da eficiência, da sustentabilidade e da competitividade. Já para não falar desse mito verdadeiramente falacioso que afirma a desmaterialização ecológica e energética da smart city.

Porventura mais significativos, temos ainda o mito da neutralidade dos dados e o mito da despolitização ou não-representação. No primeiro caso, o mito funda-se na matéria-prima dos dados considerados como o ADN da biopolítica do nosso tempo, o átomo e a molécula da nossa era. No segundo caso, o mito funda-se na desintermediação da representação política e na coprodução da política e do espaço público.

Smart City, as correntes do planeamento urbanístico

Um segundo tópico diz respeito às correntes do planeamento urbanístico na era digital. Sigo de perto a categorização apresentada por Nicolas Douay (Douay, 2018) de inspiração claramente tecnológica e digital.

. o urbanismo algorítmico

Estamos perante uma versão que nos leva da rutura tecnológica até ao urbanismo de inspiração neocibernética. A grande central, o Big Data e o cálculo algoritmo, eis a arquitetura desta corrente de planeamento urbanístico. Estamos perante uma racionalidade claramente artificial, conduzida e manipulada por uma expertise profissional própria das tecnologias de informação e comunicação, com objetivos explícitos de comando e controlo postos em prática por via de plataformas de controlo fechado onde reina o formalismo dos processos e procedimentos de cálculo que debita padrões e métricas de comportamento onde todos nós somos, afinal, produzidos. Estamos em plena sociedade algorítmica.

. o urbanismo uberizado

Estamos perante uma versão que nos leva da rutura tecnológica até ao domínio do capitalismo urbano, uma etapa na privatização da cidade que acompanha, afinal, o reforço dos grandes grupos económicos e empresariais. Nesta versão urbana não há, em princípio, uma central de operações e unidade de comando, mas, seguramente, uma autoridade de regulação, pois a iniciativa é devolvida ao mercado e às plataformas que atuam no mercado em “modo de autoregulação”. Estamos perante uma estratégia de disrupção e desintermediação, repleta de conflitos de interesse e diferentes arbitragens e onde, geralmente, o capital privado associa inovação, precarização e lucro.

. o urbanismo wiki colaborativo

Estamos perante uma versão que nos leva da rutura tecnológica até às mobilizações de cidadãos na internet, numa linha, digamos, libertária e liberal, tendo em vista uma certa “coprodução da cidade”, à imagem e semelhança do exemplo da Wikipédia. Trata-se de uma plataforma inteiramente aberta, a funcionar em contínuo, em modo contributivo e em permanente elaboração e assente na economia das multidões nas suas versões crowdsourcing, crowdlearning e crowdfunding, por exemplo, através de algumas civic tech. Não será propriamente uma corrente de planeamento urbanístico, mas pode ser uma metodologia complementar de outras metodologias mais estruturadas.

. o urbanismo open source

Estamos perante uma versão que nos leva da rutura tecnológica até à inovação urbanística, numa linha, digamos, neoinstitucional e participativa tendo em vista abrir os dados públicos às parcerias público-privadas através de plataformas abertas. O urbanismo open source renova e refresca as metodologias de modelação urbana e abre a porta não apenas a uma nova administração em linha, como, sobretudo, a uma coprodução de serviços urbanos muito mais eficiente e imaginativa. Esta abordagem terá sempre uma restrição inerente, qual seja, o acesso aos dados, a sua qualidade, o seu tratamento e a sua publicitação.

. o urbanismo multiforme e eclético

No final, é provável que o modelo urbanístico escolhido seja um mix destas várias contribuições, uma vez que o acesso aos dados públicos da administração urbana é uma condição essencial para que se estabeleçam parcerias e plataformas e surjam empresas inovadoras (start up) e iniciativas da sociedade civil (civic tech) com um papel importante na modelação urbana e impacto na arquitetura e na qualidade dos serviços públicos oferecidos.

Da Smart City à cidade inteligente e criativa

O terceiro tópico diz respeito à cidade criativa muito para lá da cidade inteligente ou smart que aqui adotámos em sentido estrito. A minha posição de princípio é muito clara, pois estou convencido de que só teremos verdadeiramente uma cidade inteligente se tivermos, ao mesmo tempo, uma cidade criativa. De resto, a criatividade pode salvar-nos a todo o momento.

Na abordagem à cidade criativa destaco os seguintes aspetos. Em primeiro lugar, a regeneração urbana pela cultura, por exemplo, os espaços desindustrializados que dão lugar a espaços culturais e artísticos. Estamos a falar de uma regeneração urbana pela economia criativa que emerge antes de qualquer programa de reabilitação ou requalificação mais formal e padronizado. É a paisagem cultural da cidade que muda.

Em segundo lugar, o ecletismo das práticas artísticas e culturais de acordo com os lugares e os públicos, também eles ecléticos, que se vão promovendo e abrindo. Esta multiplicação de lugares, públicos e práticas cria as condições para a criatividade acontecer, tornando possível os encontros imprevistos e improváveis.

Em terceiro lugar, esta democratização da cultura abre caminho para a formação de uma nova política urbana criativa. A antiga fábrica ou armazém, o bairro ou o novo espaço de coworking, intensificam as suas interrelações e esta intensidade-rede faz o caminho para os futuros clusters criativos.

Por último, os lugares, os coletivos, as práticas, os públicos, as plataformas colaborativas, a pouco e pouco, enraízam os clusters criativos, os benefícios dos efeitos de aglomeração fazem-se sentir e são criadas as condições materiais e contextuais para que a próxima fase, o ecossistema criativo, seja alcançada.

Infelizmente, os efeitos externos desta trajetória criativa não são, assim, tão lineares. Neste percurso até à cidade inteligente e criativa há alguns excessos que se podem revelar contraproducentes. Em primeiro lugar, a turistificação, depois a pressão imobiliária, em terceiro lugar, a gentrificação dos bairros dos centros históricos, depois a ludificação noturna que perturba bastante os residentes, finalmente, a liquidificação da cidade, feita de celebração, efemérides e acontecimentos, uma cidade de elos fracos e reduzida sociabilidade. 

Notas Finais

Em jeito de síntese final, talvez possamos resumir a trajetória provável da cidade inteligente e criativa do século XXI da seguinte forma:

  • Será parte de um novo paradigma territorial que se formará em redor de grandes metrópoles, redes de cidades inteligentes e criativas e nas interligações entre o sistema natural e o sistema urbano,
  • Atravessará ciclos sucessivos de inovação tecnológica e digital cada vez mais curtos e será, por isso, objeto de muitas transformações digitais,
  • Assistirá a uma pequena revolução na administração de dados abertos e experimentará, por isso, novas soluções de coprodução de serviços ao público,
  • Participará em novas cadeias de valor e outras constelações de protagonistas surgirão para repartir o valor acrescentado,
  • Participará em novos modelos de negócio empresarial, do negócio informático puro e duro, à start up inovadora e às plataformas colaborativas de utentes e cidadãos,
  • Emergirá uma organização mais diversificada do mercado de trabalho e novos regimes de relação laboral verão a luz do dia,
  • Participará em novas relações sociais e outras tantas formas de sociabilidade em resultado das novas plataformas e das redes sociais que lhes estão associadas,
  • Participará em novas linguagens simbólicas e uma outra cultura de relação em resultado da crescente interação das novas formas de inteligência coletiva,
  • Participará em novas formas de articulação entre tecnologia, ecologia e humanidade, a testemunhar a transcendência dos valores humanos,
  • Participará, por fim, em novos modos de regulação e governação dos territórios.

No final, esperamos todos que esse cadinho de humanidade que é a cidade inteligente e criativa tenha efetivamente ocorrido, de preferência num lugar privilegiado da nossa pessoal circunstância.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

Sugerir correcção
Comentar