O que ela me fez (parte III)

Afonso Reis Cabral foi o director por um dia na comemoração do 30.º aniversário do PÚBLICO, no dia 5 de Março. À boleia desta data, desafiámos o escritor a iniciar um conto, que tem vindo a ser continuado por outros escritores, na velha tradição do género “cadáver esquisito”. Para continuar o arranque, Reis Cabral escolheu Ana Margarida de Carvalho. E esta apontou Gonçalo M. Tavares, que, por sua vez, indicou Jaime Rocha para o remate da história, no próximo domingo.

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Lariça traz na mão essa luz prática da avó, essa forma invulgar de gostar, largando; tudo é sistema afectivo e táctil concentrado no mínimo: tocar apenas o suficiente para que o outro comece a caminhar por suas bípedes vontades e forças. Lariça deu energia ao rapaz que ali está amarfanhado, mole, tonto e grogue depois da sua própria energia muito física ter sido atirada inteira e sem regresso para a moça. Uma troca em forma de boxe lentíssimo, decimal e afável, mas desigual. Ela, potente e direita como se prestes a partir para corrida de cem metros decisiva; ele feito material em decomposição que se recolhe com rede e paciência por coleccionadores atentos a fisiologias vivas abaixo do mínimo que a cidade exige. Parece ter sido bombardeado, o rapaz, braços abertos espalhados pela cama, tronco imóvel, cabeça que parece ser já uma abóbora qualquer sem pinta de raciocínio ou raiva, e boca de onde sai em câmara muitíssimo lenta uma baba satisfeita que, para um distraído observador, poderia ser confundida com um qualquer líquido branco a sair da boca já sem vontade alguma de um morto. Mas o moço não está morto, nein, nada disso, está satisfeito. É quase igual. E dorme. Efeito de bombardeamento privado, esse modo individual de destruir e ser destruído não parece deixar atrás infelicidade e gritos, apenas um corpo em estado de balbucio inconsciente e adormecido. Com este cansaço e satisfação, o humano ainda estaria a desenhar a roda em cadernos de ficção científica; do cansaço satisfeito não se faz nada, nadinha.

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