A covid-19 e a política das selfies

Não é boa ideia o Presidente da República continuar por aí a abraçar pessoas como sempre fez. Além de violar as orientações das autoridades de saúde, assoberbadas com o enorme desafio da covid-19, Marcelo Rebelo de Sousa está neste momento perante um dilema que pode vir a tirar-lhe o chão: que fazer sem as selfies e os beijinhos que se tornaram nele uma segunda natureza?

Perante a epidemia global da covid-19, com consequências graves e ainda imprevisíveis a muitos níveis, as regras da OMS apontam para a necessidade de algum distanciamento interpessoal para evitar contágios. Sem exageros, mas com bom senso. Tem sido essa, também, uma das orientações da Direcção-Geral da Saúde. Ora o hábito de beijar e abraçar toda a gente, mesmo pessoas desconhecidas, é frequente nos políticos, que são até criticados se o não fizerem. Vamos ter de mudar esse padrão de comportamento, que é sociocultural e está muito arreigado.

Edward T. Hall chamou há muito anos “dimensão oculta” a essa espécie de bolha invisível que nos cerca e que é o nosso território individual, cuja invasão por terceiros é sentida como uma agressão se não houver um contexto de intimidade. Essa bolha varia de tamanho com as culturas e circunstâncias, o que explica que um forte abraço de um estranho num funeral não seja considerado invasivo, mas uma aproximação excessiva de alguém desconhecido na rua seja um sinal de alerta.

A “proxémia”, como a Escola de Palo Alto a que Edward Hall pertencia chamou a este conceito, desenvolveu o tema nas suas implicações antropológicas, sociológicas e psicológicas. Analisou-o na experiência quotidiana, na vida urbana, no contacto intercultural. Os diplomatas, por exemplo, aprendem a gerir a distância aos seus interlocutores de acordo com os hábitos de cada cultura.

Os latinos são conhecidos por uma proximidade física muito maior do que a de povos nórdicos, o que pode causar estranheza no relacionamento interpessoal. Um dos traumas que Lady Di provocou na família real inglesa foi o de não respeitar a velha etiqueta da aristocracia britânica, que determinava que se guardassem distâncias ao dirigir a palavra a pessoas de outra condição.

A covid-19 está desde já a obrigar-nos a rever alguns dos nossos hábitos políticos. O que parecia numa figura pública um gesto de afecto e proximidade pode passar a ser considerado um mau exemplo ou mesmo uma temeridade. Há que reequacionar o tipo de campanhas eleitorais a que estamos habituados. A distância entre eleitores e eleitos não se anula com proximidade corporal.

Não é por isso boa ideia o Presidente da República continuar por aí a abraçar pessoas como sempre fez. Além de violar as orientações das autoridades de saúde, assoberbadas com o enorme desafio da covid-19, Marcelo Rebelo de Sousa está neste momento perante um dilema que pode vir a tirar-lhe o chão: que fazer sem as selfies e os beijinhos que se tornaram nele uma segunda natureza?

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