Pérez de Cuéllar: o diplomata discreto que deu a volta ao mundo em busca de consensos

Ex-secretário-geral da ONU serviu em postos diplomáticos por todo o globo e foi peça-chave no fim da guerra Irão-Iraque, nos acordos de paz em El Salvador e na independência da Namíbia. E até interrompeu a reforma para ajudar o Peru no pós-Fujimori. Morreu aos 100 anos.

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Pérez de Cuéllar, ao centro, entre Boutros Boutros-Ghali, que lhe sucedeu directamente, e Kofi Annan, que sucedeu a Boutros-Gahli Peter Morgan/REUTERS

Javier Pérez de Cuéllar, antigo secretário-geral das Nações Unidas, diplomata de carreira e chefe do Governo de reconciliação nacional peruano, após a ditadura de Alberto Fujimori, morreu esta quarta-feira (madrugada de quinta-feira em Portugal), com 100 anos de idade, de causas naturais. E “em paz”, segundo o filho.

Figura de destaque na atribulada e imprevisível segunda metade da Guerra Fria, Cuéllar foi protagonista, entre 1982 e 1991, de algumas das principais conquistas diplomáticas da ONU, em palcos de guerra e de convulsão social cujo futuro imediato parecia destinado à derrota. 

“Um estadista realizado, um diplomata comprometido e uma inspiração pessoal, que teve um profundo impacto na ONU e no nosso mundo”, escreveu sobre ele António Guterres, sublinhando a importância da sua acção durante “duas eras distintas nas relações internacionais”: 

“Primeiro, em alguns dos anos mais gelados da Guerra Fria e, depois, na confrontação ideológica do seu final, numa altura em que a ONU começou a desempenhar mais plenamente o papel que foi contemplado pelos seus fundadores”, disse o actual secretário-geral.

Na lista de feitos de Pérez de Cuéllar, um diplomata de consensos, tido como “discreto”, “competente” e “negociador hábil”, embora “pouco carismático”, destacam-se a mediação das negociações entre Irão e Iraque, que culminaram no fim da guerra que durou oito anos (1980-1988), o envolvimento na caminhada que levou à independência da Namíbia (1990) ou o papel decisivo nos Acordos de Paz de Chapultepec, que acabaram com conflito civil em El Salvador (1992).

A estas vitórias somou uma série de outras intervenções, bem-sucedidas, em processos tão sensíveis como a invasão israelita do Líbano (1982), os conflitos prolongados no Afeganistão, no Camboja e na Nicarágua ou o braço-de-ferro entre Marrocos e a Frente Polisário. E, claro, também liderou ofensivas diplomáticas frustradas, com destaque para o falhanço das negociações entre Argentina e Reino Unido, que levaram à eclosão da Guerra das Malvinas (1982).

Os seus êxitos valeram a Cuéllar distinções e honras de Estado da rainha Isabel II (Reino Unido), do Presidente François Mitterrand (França) ou do Presidente George H. W. Bush (EUA), e prémios conceituados como o Príncipe da Astúrias (Espanha) ou o Prémio Olof Palme (Suécia).

Diplomata, professor e ministro

Antes de ter sido o primeiro latino-americano a ser conduzido ao mais alto cargo da ONU, contra toda as expectativas – foi eleito em 1981, depois de seis semanas de variados bloqueios e recusas dos membros do Conselho de Segurança a outros candidatos –, Pérez de Cuéllar serviu o seu país, o Peru, como diplomata, numa carreira longa iniciada em 1944.

Entre cargos menores no Ministério dos Negócios Estrangeiros e cargos consulares e embaixadas e representações peruanas no exterior, Cuéllar esteve destacado em países como Reino Unido, Bolívia, Brasil, União Soviética, Polónia, Suíça, Venezuela ou França. Pelo meio, foi professor de Direito Diplomático na Academia Diplomática e de Relações Internacionais, no Peru.

Foi ainda representante do Peru na ONU e no Conselho de Segurança e, já depois de aderir aos quadros das Nações Unidas, teve o seu primeiro grande feito diplomático quando ajudou os líderes das comunidades grega e turca a sentarem-se à mesa no Chipre (1975).

Nascido em Lima, capital do Peru, a 19 de Janeiro de 1920, Javier Pérez de Cuéllar Guerra não se destacou apenas pela sua carreira internacional. Em 1995 candidatou-se à presidência do Peru, mas foi derrotado por Alberto Fujimori.

Quando o Presidente autoritário caiu, em 2000, afogado em casos de corrupção – mais tarde foi acusado de crimes contra a humanidade e violações de direitos humanos – Cuéllar aceitou suspender a reforma e liderar um Governo de transição democrática, no qual serviu como presidente do Conselho de Ministros e ministro dos Negócios Estrangeiros, até 2001.

Ainda voltou à diplomacia, em Paris, exercendo o cargo de embaixador do Peru em França, mas acabou por se retirar definitivamente de cena quando o Governo do Presidente Alejandro Toledo foi denunciado por corrupção.

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