O ódio ao presente

O professor Miguel Castelo-Branco tem, no fundo, um problema com a própria democracia. Mas é importante prestar atenção ao seu discurso, por mais desvairado que pareça.

O mais recente episódio do programa “Prós e Contras” da RTP contou com a participação do professor Miguel Castelo-Branco, por sinal, figura de proa do movimento “Nova Portugalidade”. Muitos amigos torceram o nariz quando o viram no programa devido ao que eles consideram ser uma postura racista. Não tenho a certeza se a palavra racismo descreve a sua postura. Parece-me algo pior, mas ao mesmo tempo incongruente. Segundo ele próprio escreve na sua página da internet, ele não é racista, mas sim “xenófobo”. O problema desta “xenofobia”, contudo, é que ela assenta na superioridade natural do que ele chama de “Portugalidade”, na verdade, uma visão do mundo problemática que merece maior atenção do que tem recebido. É incongruente porque ele parece considerar natural que culturas “inferiores” se submetam à dominação de culturas “superiores”.

Interessei-me por entender esta visão do mundo quando logo na sua primeira intervenção nesse programa ele manifestou falta de interesse pelo que chamou de “superstição” do progresso e disse, pelo contrário, acreditar apenas na tensão entre “abismo e ascensão para outros níveis de consciência”. Há nesta revelação uma ode a uma espécie de niilismo que se confirma nos seus vários escritos, sobretudo na rubrica “Nova Ideia” do seu site. Trata-se dum niilismo de inspiração Nietzscheana que repudia o progresso como afirmação dos mais fracos sobre os mais fortes. Dito doutro modo, a ordem anterior marcada pela desigualdade e pela prerrogativa dos mais fortes de oprimirem os mais fracos é a ordem natural das coisas. Tudo aquilo que procura alterar esta ordem introduzindo uma moral que rejeita a desigualdade e a opressão constitui manifestação da “mentalidade de escravo” que Nietzsche acusou o Cristianismo de ter usado para corromper o mundo.

A leitura dos textos nesse site põe a descoberto uma visão do mundo com uma aversão doentia e sistemática ao presente. Não é exactamente a exaltação do passado. É, antes pelo contrário, o ódio ao futuro que se apresenta aos olhos do autor na forma duma sociedade aberta que resulta do progresso humano. Daí, creio, a rejeição do progresso como uma “superstição” e a exaltação do “abismo” ou da “ascensão para outros níveis de consciência”. É uma rejeição da História. Os textos exaltam a “Portugalidade” como uma maneira de estar que não resulta de nenhuma engenharia social, mas sim da revelação do génio dum povo que se impôs ao resto do mundo pelo seu vigor estético e virilidade. O professor Castelo Branco é sincero quando diz que não é racista, pois no seu esquema filosófico a categoria racial é apenas acidental. Conforme ele sugere, não é a cor da pele que inscreve alguém na “Portugalidade”, mas sim a identificação com o seu valor intrínseco e imutável assim como a hostilidade em relação a tudo quanto possa diluir esse sentido de destino partilhado. Ele escreve vários textos em que argumenta, por exemplo, contra a “Lusofonia” para dizer que nem mesmo falar Português faz de alguém “português”. Cita exemplos de comunidades pelo mundo fora que se identificam como “portuguesas” sem mesmo falarem a língua. Não é que ele não goste de negros. Detesta os negros que não aceitam a sua condição subalterna. Isso inclui também os brancos pobres.

Eu acho que é importante prestar atenção a este discurso, por mais desvairado que pareça. Há duas coisas importantes que ele faz com a sua definição de “Portugalidade”. A primeira é que coloca a “heroicidade” que se manifestou por via das conquistas imperiais e, portanto, da capacidade de Portugal de vergar outros povos à sua vontade como o principal critério de definição dessa “Portugalidade”. Sendo assim, pertence a esta cultura todo aquele que aceita como sendo natural a sua estrutura social. Ou, dito de outro modo, há os fortes e há os fracos e a vida, infelizmente, é assim. Não importa se alguém é negro ou não, o que importa é se aceita a sua posição subalterna. Este critério aplica-se também aos portugueses de pele clara que se encontram no fundo da estrutura social. Têm que aceitar a sua posição subalterna. A aparência de monarquismo que o movimento tem assenta, na verdade, neste ideal de sociedade, nomeadamente uma sociedade desigual por força da ordem natural das coisas. A segunda coisa é que esta visão do mundo define como seu inimigo todo aquele que não se conforma com esta ordem. Toda a sociedade que resulta da engenharia social é uma sociedade frágil e votada ao fracasso. A moral reside no heroísmo dum povo e, por isso, só merece existir uma sociedade preparada para morrer em defesa de si própria – o tal “abismo”. Há ecos do Nazismo, sobretudo aquela convicção profunda assente na ausência de certeza sobre a existência do mundo e o refúgio na comunidade original pelo bocadinho de certeza que ela confere. Por isso, mais “perigosa” do que os negros, ciganos ou outros sujeitos racializados é a esquerda e, no passado, o liberalismo (de Sá da Bandeira, mas também de António Enes muito mais tarde) que, ao inventar as políticas públicas, introduziu um elemento que desestabiliza a ordem natural das coisas. É por isso que o professor Castelo Branco rejeita o “nacionalismo” – um espaço político dentro do qual direitos definem a pertença – a favor do “patriotismo”, esta coisa vaga que só apreende quem dela faz parte.

Admitir a existência de minorias em Portugal – no programa ele mostrou relutância em falar de “comunidades” – é diluir o sentido de patriotismo tão essencial à sua segurança ontológica num mundo incerto. Por essa razão, o niilismo deste movimento manifesta-se como ódio ao presente, pois o presente cria – e é criado pelos – espaços que resultam de políticas públicas. Vários painelistas, sobretudo a professora Cristina Roldão, insistiram muito sobre este assunto e isto criou mais desconforto ao representante da Nova Portugalidade do que tudo quanto se disse sobre o racismo em si. O que mais o incomoda é uma sociedade moderna que se constitui politicamente. Está aqui, pelo menos para mim, a chave para discutir com indivíduos desta laia, ou melhor, para conversar com portugueses sensatos sobre o perigo que esta visão do mundo constitui. O “racismo” é um efeito secundário do seu posicionamento. O essencial deste posicionamento é o ódio ao presente e nesse ódio manifesta-se algo mais importante ainda, nomeadamente uma aversão total à política.

O professor Miguel Castelo-Branco tem, no fundo, um problema com a própria democracia. Ele parece detestar a democracia entendida como regras de jogo para se lutar por uma melhor condição humana, porque isso é sinal de fraqueza e de submissão à moral dos fracos. Nesse sentido, ele não é apenas um problema para os “sujeitos racializados”. É também um problema para todos os portugueses que acreditam na democracia e, porque não, no progresso humano.

(este artigo é uma versão modificada de um texto originalmente publicado no mural de Facebook do autor)

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