Mão de Ferro?

O combate a populismos de direita ou de esquerda faz-se com inteligência e cabeça fria. Se no caso da “vergonha”, Ferro se deixou levar pela emoção, agora teve uma atitude de estadista.

Já aqui apresentei as razões constitucionais e criminológicas que tornam a castração química como pena acessória obrigatoriamente imposta não somente contrária à Lei Fundamental, como de utilidade prática duvidosa. Foi com naturalidade que vi, desde logo, que o Presidente da Assembleia da República (PAR), em 11/12/2019, suscitou dúvidas quanto à admissibilidade do projecto de lei n.º 144/XIV (cf. art. 30.º, n.º 1 da CRP), mas, de modo a permitir o debate e seguindo posições de anteriores Presidentes, entendeu – e bem – que o mesmo deveria baixar  à Comissão competente, a dos Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, mais conhecida por “1.ª Comissão”.

Tratou-se do exercício da competência que o Regimento da AR lhe acomete, no seu art. 16.º, n.º 1, al. c) (verificar a regularidade regimental do projecto de lei, com possibilidade de recurso para o plenário; cf. também o art. 82.º, n.º 1), para além da al. u) – assegurar o cumprimento do regimento. Antes disso, é a própria CRP que, no art. 162.º, al. a), obriga a AR e, como é óbvio, à cabeça, o seu Presidente, a “vigiar pelo cumprimento da Constituição”.

Já a nota técnica da responsabilidade dos serviços da AR, que precede qualquer parecer de uma comissão parlamentar, deve apreciar os “requisitos de conformidade constitucional” (art. 131.º, n.º 2, al. a)). Aí se escreveu que existem “normas (…) que nos suscitam sérias dúvidas jurídicas sobre a sua constitucionalidade, por estabelecem a pena acessória de castração química temporária, sem o consentimento do condenado”.

Na 1.ª Comissão, a relatora do parecer sobre o projecto foi clara na conclusão de que o mesmo era inconstitucional, tal como é límpido o art. 120.º, n.º 1 do Regimento: “[n]ão são admitidos projectos e propostas de lei ou propostas de alteração que: a) Infrinjam a Constituição ou os princípios nela consignados”. Nas conclusões lê-se que “o projecto de lei apresenta dificuldades manifestas no que respeita à sua conformidade constitucional, nomeadamente por colisão com os artigos 1.º, 18.º, n.º 2, 25.º e 30.º, n.º 1 da CRP”. Mais do que isso, na parte do parecer, facultativa e não vinculativa, em que o relator pode, se o entender, dar a sua opinião sobre o tema (art. 137.º, n.º 1, al. b) e n.º 3), a deputada Cláudia Santos, Professora de Direito Criminal em Coimbra, não se furtou a expor com exactidão e propriedade a insolvabilidade inconstitucional do projecto.

Cauteloso, Ferro solicitou esclarecimentos à Comissão, no sentido de saber se esta considerava que as “dificuldades” indicadas seriam ou não ultrapassáveis no decurso do processo legislativo, questionando directamente se reunia ou não o parecer as condições legais para a discussão na generalidade. E as respostas foram claras: quanto à castração, não estavam reunidos os requisitos legais para a discussão no plenário e a inconstitucionalidade da pena acessória não podia ser ultrapassada. Que mais podia o PAR fazer, sob  pena de ele mesmo estar a vulnerar frontalmente a Lei Fundamental?

Acresce, por fim, que o brilhante parecer do Conselho Superior da Magistratura é muito claro quanto a tal inconstitucionalidade material e o da Ordem dos Médicos indica, sem tibiezas, que a castração química seria um “acto médico” que, desde logo, dificilmente se poderia caracterizar como tal e, para além disso, violaria todos os princípios basilares da ética e deontologia clínicas. 

Donde, juridicamente, a decisão de Ferro Rodrigues é inatacável, tanto mais que o recurso para o plenário foi julgado improcedente. A Lei não o permite, mas se desta deliberação se pudesse recorrer para um tribunal administrativo ou mesmo para o Tribunal Constitucional, estou seguro que seria mantida.

Outro plano de discussão é de natureza política. Muitos defendem que Ferro deveria ter permitido que o projecto seguisse para discussão na generalidade, de modo a que ficasse patente que a iniciativa legislativa não tinha quaisquer hipóteses de ser aprovada, não somente por questões de política criminal, mas, sobretudo, por ferir de morte a Constituição e os valores que defendemos enquanto comunidade organizada em Estado. E, politicamente, repito, isso teria sido óptimo, pois o oportunismo, o cinismo, o “estar a marimbar-se para a CRP”, o populismo, a falta de seriedade no tratamento de temas tão complexos como este e que naturalmente a todos provocam sentimentos de repulsa quanto aos condenados por crimes sexuais contra menores, seriam desmascarados. Tal poderia servir para ajudar a compreender ao que vêm certos deputados e a total ausência de propostas concretas e dentro dos limites constitucionais para a vida diária dos Portugueses.

Simplesmente, se Ferro o tivesse feito, estava a desrespeitar o Regimento e a fazer o mesmo que essa figura faz: julgar-se acima das leis e afirmar, como se nada fosse, que a lei das leis não lhe diz nada, mesmo tendo sido professor de Direito. Numa palavra, o PAR demonstrou a superioridade ética que deve nortear o Estado, não jogando com as mesmas armas dos que pretendem, na prática, um regime que vá ziguezagueando ao sabor do maior ou menor clamor público, tantas vezes manobrado por razões inconfessadas. 

O combate a populismos de direita ou de esquerda faz-se com inteligência e cabeça fria. Se no caso da “vergonha”, Ferro se deixou levar pela emoção, agora teve uma atitude de estadista. Não tenho dúvidas que para uma pessoa com tanta experiência política, mais fácil teria sido deixar o projecto seguir para o plenário e aí ser chumbado. Mas, repito, com esta atitude, o PAR demonstrou que não vale tudo e que as instituições têm de assumir as suas funções constitucionais e dar-se ao respeito.

A decisão precipitada de mero tacticismo político, ainda que nobre, por combater extremismos, não é compatível com um órgão de soberania que se deve prestigiar como agora aconteceu com a decisão de Ferro Rodrigues.

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