Brasil – O leite derramado e a tentação autoritária

Não basta à oposição chorar o leite derramado e querer voltar atrás. Agora os desafios são diferentes e o principal deles, o mais urgente, é afastar o cálice das soluções autoritárias com que o populismo tenta o Brasil.

A análise dos dados oficiais é conclusiva: ao cabo de um ano de governo Bolsonaro, as coisas não vão bem numa série de áreas sociais.

O “Bolsa Família” (espécie de Rendimento Social de Inserção, que vem desde os tempos de FHC, depois reforçado nos governos Lula) encontra-se praticamente congelado, recuando mês a mês, inclusive nas regiões mais carentes – um terço das cidades mais pobres. A fila de espera pela concessão do benefício já vai em 3,5 milhões de pessoas. Sem apoio federal, a população volta a bater à porta dos municípios em busca de comida e outra ajuda, assistindo-se a um princípio de colapso da rede de assistência. O mesmo acontece com o “Minha Casa, Minha Vida” – programa de habitação social dos executivos PT –, que praticamente colapsou.

A Segurança Social atravessa aliás uma crise sem precedentes: com falta de pessoal e deficiências estruturais, não consegue há meses processar em tempo útil os pedidos de pensões, que dispararam devido à reforma da Previdência: 1,3 milhões de pessoas à espera.

Na Educação, graves perturbações: mudança de ministro logo no primeiro semestre, espírito de confronto e intolerância permanentes por parte do novo titular, clima de intimidação nas escolas e na própria Academia – agora sob vigilância ideológica –, congelamento de recursos e cortes financeiros, com redução das bolsas de pesquisas e dos investimentos em educação básica e superior. Resultados ruins igualmente na maioria dos índices da Saúde. Com as modificações introduzidas pelo governo no programa “Mais Médicos”, que recrutava clínicos cubanos, muitas localidades do interior ficaram sem assistência e houve redução dos atendimentos em cuidados básicos. Há hoje 3942 médicos a menos atuando no programa do que em novembro de 2018.

A tudo isto junta-se a continuada deterioração das infraestruturas rodoviárias, o descaso ambiental – com crescimento em 29,5% do desmatamento da Amazónia (86% em queimadas), a paralisação da reforma agrária e o congelamento das demarcações de terras indígenas, onde o executivo se prepara para dar luz verde à intensificação da exploração económica e dos recursos minerais, mesmo nas reservas já atribuídas.

A própria economia – setor em que os apoiantes da atual solução governativa depositam as maiores esperanças para alavancar a reeleição de Bolsonaro em 2022 – não registou até agora os resultados esperados das políticas liberais que vêm sendo seguidas. A recuperação da crise em que o país mergulhou a partir de 2014 está ainda em marcha lenta e os sinais são contraditórios. No último ano, houve criação de postos de trabalho com contrato assinado – mais de 600 mil – e a taxa de desemprego caiu em consonância, mas ainda está nos 11%, o que significa que mais de 11 milhões de brasileiros permanecem sem trabalho; ao mesmo tempo, vem aumentado a ritmo mais elevado o número de trabalhadores informais. As previsões de crescimento para o próximo ano apontam agora para algo em torno dos 2%, muito longe do ritmo necessário a um verdadeiro arranque que leve o Brasil a outro patamar.

Apesar deste quadro, os protestos têm sido escassos. Em maio do ano passado, os estudantes foram às ruas em todos os Estados contra os cortes anunciados na Educação, mas depois as coisas serenaram. Em geral, assiste-se a uma espécie de apatia e o governo parece ainda desfrutar de um crédito de confiança, muito baseado no sentimento de ódio ao PT, que perdura. Motivado pelo envolvimento do partido na corrupção, traindo todas as suas promessas de anos e anos de luta, esse sentimento marcou as eleições de 2018, polarizou o país e ainda hoje persiste.

Mudança de paradigma

Essa retórica anti-PT chega a adquirir foros de cruzada, assumindo-se como parte integrante de uma salvífica mudança de paradigma que se pretende instaurar no país. Inspirado pelos setores evangélicos mais radicais, esse desejo de transformação, que se alimenta também de um amplo cansaço com o politicamente correto, retoma a velha ideia de que o desenvolvimento do Brasil teria sido historicamente prejudicado pela influência da Igreja Católica, em particular da Inquisição, traduzida numa “opção pela pobreza”, com desvalorização do espírito empresarial, condenação do juro, aversão ao lucro e entendimento do trabalho mais como destino adverso do que caminho para a realização pessoal [1]. É essa suposta herança negativa herdada da colonização portuguesa que as correntes evangélicas – em particular as igrejas neopentecostais, em ascensão crescente no Brasil desde os anos 70 do século passado – se propõem superar, apostando na exaltação do empreendedorismo, no valor do trabalho e no espírito de sucesso individual, tendo como exemplo inspirador o grande vizinho do Norte, “esse país que deu certo”.

A par do profundo desencanto com o PT, que em muitos se transformou em ódio e intolerância, a partilha desses valores e a esperança de que a sua instauração possa finalmente abrir caminho ao velho sonho brasileiro de um futuro à medida da sua grandeza podem ajudar a explicar que a aprovação do governo tenha até aumentado nos últimos meses, apesar dos dados disponíveis mostrarem, como vimos acima, desempenho pífio ou mesmo desastroso.

A vida política ainda transcorre, em geral, dentro das regras do Estado de direito, embora o Presidente brasileiro todos os dias teste o limite dessas fronteiras com declarações ofensivas, designadamente contra os jornalistas e a imprensa. Mas o clima é tenso – os juízes do Supremo foram avisados pela polícia de que poderão ser alvos de atentado, devendo reforçar a segurança e o Planalto, cujas secretarias já estão preenchidas só por militares de alta patente, parece transformado em quartel-general. A questão que se coloca é a de saber como esse aparelho montado pelo Presidente irá reagir em momento de crise mais aguda de um eventual confronto de posições entre o Executivo e o Legislativo e/ou o Judiciário e também quando e se as investigações sobre as suspeitas que envolvem o clã Bolsonaro avançarem. 

Divididos, os partidos de oposição têm-se mostrado incapazes de mobilizar os setores prejudicados ou escandalizados com as políticas atuais. Para isso, precisariam de recuperar a bandeira perdida da luta contra a corrupção e as próprias cores nacionais – o verde e amarelo, que deixaram escapar para as hostes governistas – e, claro – sobretudo Lula e o PT – fazerem uma autocrítica séria e darem explicações ao Brasil. O simples lamento choroso ou indignado dos intelectuais e dos setores mais ilustrados das classes médias – de que é expressão máxima o filme de Petra Costa Democracia em Vertigem, que concorreu ao Óscar de melhor documentário – não chegam para desfazer o nó de tensas contradições com que o país se debate. Não bastará à oposição chorar o leite derramado e querer voltar atrás. Esse tempo, apesar do apoio de que Lula ainda parece desfrutar junto de um terço do eleitorado, não voltará mais. Agora, os desafios são diferentes e o principal deles, o mais urgente, é afastar o cálice das soluções autoritárias com que o populismo tenta o Brasil.

Mais cedo até do que se esperava, uma crise pode eclodir a breve trecho. Claramente apostado em testar as águas, o Presidente brasileiro colocou nas redes um vídeo de apoio a manifestações convocadas para o dia 15 de março por organizações de extrema-direita em favor do governo, contra o Parlamento e o Supremo Tribunal Federal. Em tom dramático, a propaganda apresenta Bolsonaro como homem de destino messiânico, verdadeiro salvador da pátria. Qual o eco que este apelo irá ter? Como irão reagir desde já os outros poderes? E os militares, o que farão?

[1] Paim, António – Momentos decisivos da história do Brasil, VIDE Editorial, Campinas – São Paulo, 2014, ps 159-171

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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