Os vírus e as quarentenas do mundo

Como se explica a tendência global para a erosão do Estado de direito – pondo a democracia de quarentena?

Nenhuma das situações-limite que o mundo conheceu desde o fim da última Grande Guerra atingiu, porventura, os contornos pré-apocalípticos deste filme de ficção científica em que nos sentimos mergulhados. É uma das consequências da globalização e da expansão do universo digital que se foram acelerando com uma velocidade estonteante desde o início do século, fazendo-nos perder o pé na realidade. Assim, as quarentenas impostas em vários países devido ao coronavírus tornaram-se também uma metáfora do estado do mundo em que vivemos, para além da epidemia propriamente dita.

O que provoca o isolamento ou o exílio forçados de tanta gente, da China à Itália, sugere outras situações de quarentena não sanitária mas cívica e política, em que os cidadãos perdem o controlo sobre as suas vidas, abdicam dos seus direitos e se submetem, por vezes voluntariamente e até por adesão militante, a diversas formas de autoritarismo e opressão. Nunca como agora neste século assistimos em simultâneo ao cruzamento de tantas tendências degenerativas do estado de direito e das liberdades individuais, a estados de guerra e extermínio tão cruéis e impensáveis como aquele que se verifica hoje em Idlib, na Síria – um autêntico caso de quarentena civilizacional –, e à impotência ou demissão dos Estados e organizações internacionais perante tais calamidades (com a Rússia apoiada pela China a vetar, na ONU, qualquer ajuda humanitária aos sírios em fuga, ou a Europa limitando-se a um protesto epistolar de catorze ministros dos Negócios Estrangeiros).

Vivemos no tempo das chamadas “democracias iliberais”, da concentração do poder nas mãos de um homem só nos países mais poderosos e populosos do mundo (China, Rússia, Índia, mas também Estados Unidos), dos movimentos xenófobos e inspirados pelo ódio ao outro (a nível do próprio Estado, como acontece com a discriminação feroz dos muçulmanos na Índia do hindu radical Narendra Modi). Como assinalava recentemente Alain Frachon no Le Monde, Trump, Xi Jinping, Putin e Modi "não acreditam senão nas relações de força. O Americano, o Chinês, o Russo e o Indiano partilham esta convicção: o político leva a melhor sobre o direito”.

Como chegámos aqui? Como se explica a tendência global para a erosão do Estado de direito – pondo a democracia de quarentena – e a progressão do vírus dos governos autoritários? Segundo a lógica da «democracia iliberal», lembra ainda Frachon, “o que ganha as eleições torna-se proprietário do Estado e submete à sua pessoa todas as instituições públicas”. E o mais chocante é que isto acontece também no país cujo sistema de poderes e contra-poderes parecia invulnerável a uma tal deriva, os Estados Unidos. Escreve Martin Wolf no Financial Times: “É difícil exagerar a ameaça que representaria uma reeleição de Trump para o jogo dos poderes e contrapoderes na América”.

Precisamente, o que a aberração anti-democrática do trumpismo nos mostra é algo que tememos reconhecer: a fragilidade da democracia e a facilidade com que, em condições propícias, ela se expõe ao vírus do autoritarismo, espécie de coronavírus político. Aqui não há coincidências fortuitas. O coronavírus nasceu no país mais populoso e com o maior regime ditatorial do mundo, a China, tendo sido o Irão, Estado religioso rigidamente autoritário aquele onde mais se expandiu em seguida. Mas as tremendas turbulências sociais, políticas e económicas que já provocou – como a queda vertiginosa das bolsas – constituem uma ameaça global, afectando em particular aqueles que minimizaram as suas consequências, como foi precisamente o caso da América de Trump. Seria uma estranha ironia que o coronavírus infectasse a reeleição de Trump e o colocasse também de quarentena.

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