Eutanásia: ainda em negação

O que estes números nos dizem é muito claro. Os cuidados paliativos não têm sido uma prioridade dos nossos políticos. Importa, por isso, clarificar o impacto prático desta opção: em Portugal morre-se com sofrimento. Morre-se sem garantir a necessária dignidade do fim de vida. Morre-se, inaceitavelmente, em sofrimento.

Um estudo realizado no Reino Unido, que avaliou a prevalência do desejo de morte antecipada no início do internamento em cuidados paliativos e quatro semanas depois, concluiu que o desejo de morte antecipada deixou de existir em mais de 1/3 dos doentes. Podemos continuar a dizer que a discussão da eutanásia nada tem a ver com o acesso aos cuidados paliativos?

Os cuidados paliativos são a dignificação da vida em vida porque qualquer fase da vida – da nascença até à morte vale de igual forma. Segundo a revista científica Current Oncology, fatores como a dor, a dispneia, a desesperança ou a perceção de perda de dignidade aumentam a prevalência de desejo de morte antecipada; todos fatores controláveis. Compreende-se por isso que a Organização Mundial da Saúde defina os cuidados paliativos como parte dos Direitos Humanos atribuindo, a cada Estado, a responsabilidade do desenvolvimento de modelos de cuidados paliativos integrados nos sistemas nacionais de saúde. Num país em que a Rede Nacional de Cuidados Paliativos não dá resposta a cerca de 70% da população, onde estão os direitos dos doentes? Que liberdade existe para decidir em consciência no viés do sofrimento?

Portugal está muito longe da garantia deste direito. Estamos, por exemplo, segundo dados de 2019 da OCDE, na cauda da Europa no que toca ao acesso a opióides – fármacos que aliviam a dor física. Apesar das recomendações internacionais indicarem a necessidade de 800-1000 camas de cuidados paliativos em Portugal, o Plano Estratégico para o Desenvolvimento dos Cuidados Paliativos (PNDCP) fixa como objetivo o intervalo de 394 a 492 camas, isto é, menos de 50% do que é internacionalmente recomendado. No entanto, e apesar destes objetivos pouco ambiciosos, em Portugal existem apenas 382 camas, sendo que apenas 169 destas estão integradas em Unidades de Cuidados Paliativos, pelo que, na verdade, estas são as únicas que preenchem os critérios estabelecidos para a sua classificação como tal. No que toca às equipas domiciliárias, se anteriormente estavam 100 previstas pelo PNDCP, curiosamente, reduziu-se esse objetivo para 54 equipas domiciliárias. Ainda assim, só existem 25 equipas no terreno.

O que estes números nos dizem é muito claro. Os cuidados paliativos não têm sido uma prioridade dos nossos políticos. Importa, por isso, clarificar o impacto prático desta opção: em Portugal morre-se com sofrimento. Morre-se sem garantir a necessária dignidade do fim de vida. Morre-se, inaceitavelmente, em sofrimento.

Como médica, estou ainda em negação. Legalizar a eutanásia hoje, em Portugal, é a reposta clara de muitos dos senhores deputados eleitos para a Casa da Democracia que continuam a crer que a eutanásia nada tem a ver com os cuidados paliativos. Legislaram com base em ideologia, sem consideração pelos peritos. Legalizar a eutanásia hoje, em Portugal, é dizer “não queremos saber das recomendações nacionais e internacionais”, como da International Association for Hospice and Palliative Care, que emitiu uma recomendação internacional para que os países não considerem legalizar a eutanásia ou o suicídio medicamente assistido antes de assegurar acesso universal a cuidados paliativos e fármacos adequados, incluindo opiáceos; ou as da Associação Médica Mundial, que reafirmou a sua oposição à eutanásia; passando pelo Conselho Nacional de Ética e Deontologia da Ordem dos Médicos, que, depois do parecer de 2018, voltou a emitir novo parecer negativo aos projetos de legalização da eutanásia e suicídio assistido nesta legislatura, até ao mais recente parecer do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, igualmente desfavorável.

Estes pareceres surgem pelo evidente: se as causas de pedido de morte antecipada são, como anteriormente exposto, passíveis de tratamento em cuidados paliativos, como podemos acreditar no argumento da liberdade numa sociedade que não dá acesso a esses mesmos tratamentos?

Legalizar a eutanásia hoje, em Portugal, é responder aos doentes que nos confidenciam que não aguentam mais a dor que a única resposta que temos para o seu sofrimento é a morte.

Como médica e como cidadã preferia ter a possibilidade de responder, como Cicely Saunders respondia aos seus doentes, perante o sofrimento deles: “Tudo faremos para que morra em paz, mas também para que viva até morrer.”

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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