Em Idlib, as crianças morrem por causa das bombas, se lá ficarem, e do frio, se fugirem

Famílias encurraladas entre uma ofensiva de Assad e uma fronteira fechada tentam proteger os seus filhos. Mais de metade dos 900 mil deslocados da guerra da Síria são crianças.

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Menina num campo para deslocados internos em Idlib Umit Bektas/REUTERS
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Um miúdo com uma galinha morta entre os destroços num campo de deslocados em Idlib Umit Bektas/REUTERS
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Crianças carregam almofadas num campo de deslocados internos Umit Bektas/REUTERS

Quando foi preciso fugir, com a sua família, de uma localidade na zona de Idlib, no Noroeste da Síria, onde os bombardeamentos começavam a soar demasiado próximos, Umm Abdo preparou o mínimo essencial para si e os seus três filhos: os casacos de inverno, uma muda de roupa.

Antes de sair, foi com as filhas ao quarto ver os peluches (o filho, de dez anos, já não tem idade para isso). Dima, de oito anos, pega no seu favorito, um urso de peluche cor-de-rosa. Betoule, dois anos, um pássaro amarelo. Não os podem levar: só o essencial irá. As meninas dizem adeus aos peluches, deixam-nos no armário, e saem, sem protestos ou hesitações, da casa onde viveram os últimos dois anos.

A jornalista da CNN Arwa Damon que acompanhou a família descreveu o ritual que muitas crianças já conhecem, despedir-se das casas onde moram há mais ou menos tempo. No Telegraph, a jornalista Josie Ensor notou como é claro que as crianças já têm prática: a maioria das que estão em Idlib já tiveram de fugir, antes, de ofensivas do regime de Assad noutras cidades.

“As crianças da Síria, a única esperança para o futuro do país, estão traumatizadas. Muitas perderam pais, irmãos, primos, e não vão esquecer rapidamente quem os matou”, comentou Ensor. Uma psicóloga infantil que passou por vários cenários violentos disse um dia à jornalista que nunca tinha visto nada como a Síria: crianças com comportamento “robótico, sem riso, sem tristeza, nada”. “Falam de coisas horríveis que viram ou que lhes aconteceu, sem terem uma resposta apropriada”, comentou.

A actual crise de deslocados em Idlib, que é a maior dos nove anos de guerra na Síria, está a ser especialmente dura para as crianças. Estão em movimento mais de 900 mil pessoas, mais de metade das quais são crianças, fugindo para o espaço cada vez mais reduzido entre a linha da frente onde atacam as forças do regime e a fronteira turca, que está fechada.

Na ofensiva das forças de Bashar al-Assad contra Idlib, o último reduto dos rebeldes, as crianças são vítimas de bombardeamentos a zonas civis, ou do frio quando ficam sem abrigo. Desde o início do ano morreram 370 pessoas na ofensiva das forças de Assad, que atingem muitas vezes zonas civis – incluindo escolas e hospitais, dizem os Capacetes Brancos. Destas vítimas, 97 eram crianças.

Queimar a própria roupa

Várias morreram de hipotermia. Num dos campos, um mural mostra a “menina dos fósforos”, figura de um conto de Hans Christian Andersen.

“Só queria que os meus filhos pudessem sentir calor”, disse ao New York Times Ahmad Yassin Leila, que perdeu o seu bebé de 18 meses, morto por hipotermia. “Não quero mais nada, só uma casa com janelas que possam manter o frio e o vento lá fora.”

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Cerca de metade dos 900 mil deslocados internos são crianças Umit Bektas/REUTERS

Na CNN, Samiya, também deslocada na zona, contou como ficou sem combustível numa noite gelada. O seu bebé de sete meses estava quente quando lhe mudou a fralda e o alimentou. Mas quando a mãe acordou, ainda de madrugada, o bebé estava gelado, com a pele cinza. Correu para o médico, que lhe disse que o filho tinha morrido de hipotermia.

Num briefing ao Conselho de Segurança das Nações Unidas, Henrieta Fore , directora-geral da Unicef (a agência da ONU para a infância), falou destas mortes de frio. Contou como quando já não há madeira, as famílias queimam o que conseguem – sacos de plástico, lixo, mobília – para ter um pouco de calor.

O New York Times diz que entre quem tem viajado de carrinha, há quem tenha trazido uma lembrança de uma casa – uma porta, uma moldura de janela. Também essas servem de lenha. Quando acaba, são queimados, em último recurso, roupa, ou sapatos. “Quando se vê as crianças morrer de frio, queima-se a própria roupa para as aquecer”, disse Amun Ahmed, 53 anos, avó de 11, ao Wall Street Journal.

Ahmed está com as filhas e netos numa sala de aula numa antiga escola agora usada como abrigo. Há famílias a dormir em casas abandonadas, em carros ou carrinhas, em tendas, e debaixo das oliveiras, cobertas com lonas, cobertores, ou com nada. 

Os pais tentam proteger os seus filhos como podem. A história de Abdullah Mohammad, que ensinou a filha de três anos a rir do estrondo dos ataques aéreos, fingindo que era fogo-de-artifício, correu mundo, graças, também, ao seu paralelo com o filme A Vida é Bela. O vídeo foi postado por um amigo turco da família nas redes sociais e depois de se ter tornado viral, as autoridades turcas contactaram a família de Mohammad e pouco mais de uma semana depois de gravar o vídeo, a família viajou para a Turquia, onde está com amigos numa localidade de fronteira.

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